Um interminável Febeapá
Antes mesmo de chegar aos 70 anos de idade – ainda obrigado, portanto, a votar – recusei-me a “ir às urnas”. Mais do que isso, perdi toda e qualquer esperança na realidade política brasileira, dependente de um sistema pérfido e enganoso. Entendi, então, o horror de que o Almirante Saldanha Marinho – logo após a queda da Monarquia – se deixara tomar diante do que ocorria: “Esta não é a república dos meus sonhos”. Para mim – pobre cidadão que lutara por quase toda uma vida contra qualquer forma de ditadura – a democracia implantada no Brasil não era do meu e de nossos sonhos, os da minha geração. Entrávamos num engodo, numa farsa. Entrávamos num modelo Frankenstein, somatório monstruoso e caricatural de oligarquia, oclocracia, plutocracia, esquecidos do que houvera de nobreza na verdadeira aristocracia de Aristóteles, o “governo dos melhores”.
Nunca mais votei. Mas não me esqueço de como vivi as primeiras eleições presidenciais após a maldita ditadura que roubou os melhores anos de nossas vidas. E como me dói ver tanta gente falando da ditadura militar sem jamais tê-la conhecido, sem jamais sofrer o desespero da falta de liberdade! Ou o controle de finanças públicas é mais importante do que a dignidade humana? A economia é para o homem ou o homem é para a economia? Mas, que cada um viva sua própria fantasia… Desde que não contamine os demais.
Pois bem. Naquela primeira eleição, em 1989, nos meus ainda fervilhantes 49 anos, fiz um ritual particular cívico de que – mesmo tendo-o, agora, por ridículo – sinto saudade. Acho que saudade de mim, saudade de ter esperanças político-partidárias, que as perdi. Vesti-me com terno e gravata, ouvi o Hino Nacional – na fantasia triunfal de Gottschalk – contive um soluço de alegria; lágrimas, deixei-as escorrerem-me dos olhos, e lá me fui, como um vitorioso, “votar para presidente”. Vencêramos a ditadura! – eram risos e lágrimas de alegria, “de um povo heroico, o brado retumbante”. Pois é…
Uma deputada estadual polêmica, controvertida e, até mesmo, pouco confiável – Conceição da Costa Neves, a Conceição Santa Maria – berrou, naquele caos do início dos 1960, o que, muitos anos depois e apesar da grosseria, foi confirmado: “Mudam as moscas mas o monte continua o mesmo.” Há, pois, que se levar a sério o que dizem mulheres com “muitos anos de janela”. Elas sabem mais do que alguns acadêmicos e analistas sociais. Viver vive-se vivendo.
Insisto, pois, mesmo que isso não interesse a ninguém: deixei de votar, não tenho qualquer esperança em mudança apenas de moscas. Há que se limpar o monte. Mas como? Sei lá eu, que nada mais sei. Certamente, a resposta esteja lá no proscênio de antigos teatros, com a máscara de Arlequim: “castigat ridendo mores” (rindo, castiga os costumes). Quando não mais se tem o que chorar, ri-se. Um destino dos povos, como o dos palhaços: “rir enquanto o circo pega fogo.” No meu quase fim de vida, sinto-me esse palhaço, ludibriado desde a adolescência, acreditando no que não merecia crédito, descrendo do que era o fundamental.
Em 1966, um jornalista alegre, culto, boêmio, bonito, lúcido – Sérgio Porto, cujo heterônimo era Stanislaw Ponte Preta – já sabia disso. Ele via o circo pegando fogo, ele ria para não chorar e, rindo, desmoralizou os predadores. Stanislaw lançou a coluna que se tornou retrato do Brasil: o Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País). Eram besteiras sem fim. Besteiras civis e militares, laicas e religiosas, sérias e divertidas, graves e agudas, de governantes e de governados. Quem iria supor, no entanto, que, quase 55 anos depois, esse Febeapá continuasse vivo, cada vez mais vivo?
Não vou, não devo e nem pretendo alongar-me. Acontece, porém, sentir-me, eu, estupidamente perplexo. Gritam, furiosamente, alguns que capitaneiam o país, que irão “varrer o socialismo do Brasil”. Mas que socialismo? Seria, por acaso, o socialismo democrático de Noruega, Dinamarca, Suécia, Finlândia, onde há quase 90 anos os governos trabalham para o bem-estar do povo “desde o berço ao túmulo”? Como misturar, num mesmo baú de ignorância, o suposto socialismo da Venezuela, com a esplêndida social-democracia escandinava?
E – meu Deus do céu! – o que é “escola sem partido”? Seria tolice, estupidez, enganação, ignorância, má fé? Partido é aquilo que faz parte de algo. E parte nada mais é senão qualquer porção de um todo. Muito além de tal besteira, escolas, jornais, relações e interrelações supõem partes, parcelas, porções que pertencem a um todo desconhecido, que é a totalidade humana. Eles querem o quê? O pensamento único defendido por um liberalismo econômico já em estado terminal, da mesma forma como já se extinguiu o comunismo? Até robôs, hoje, têm partido, pois programados por seus criadores.
O ser humano foi idealizado como criatura múltipla, capaz de santidade e de bandidagem, da bondade e da crueldade. Nascemos e existimos como parte do todo, vivemos como partes, temos que tomar partido a cada instante de nossa vida. Padronizar a educação e o ensino é um atentado a qualquer inteligência mediana. “Escola sem partido” é o mesmo que “pensamento único”. Ou seja, a lei do mais poderoso. Ainda outra vez.