“In Extremis” (1) – Num despertar
De repente, a inesperada e intensa vontade de dormir. Ainda no início do anoitecer, algo que não me lembro de, antes, ter-me acontecido. Não propriamente sono, mas sonolência, um certo torpor. No mesmo momento, uma querida irmã contou-me ao telefone: “Morreu a Doris Day, aos 97 anos.”
A sonolência aumentou. E, então, senti-a em forma de exaustão. Para mim, quem morrera fora um sonho. Outro. Pareceu-me, então, haver justificativa para o vazio, a perplexidade, a incompreensão quase angustiada em relação às nossas últimas décadas. Pois, tenho-me perguntado – em meus diálogos comigo mesmo – como, depois de ter vivido outras décadas, algumas delas douradas, é possível sobreviver nesse lodaçal ao qual fomos lançados. Mais do que o Como, também o Porquê, o Para quê. E o Para quem. Foi John Lennon quem – nos já longínquos 1960 – chorou a descoberta: “O sonho acabou”. Recusamo-nos a acreditar, pois eram muitos e esplêndidos aqueles tantos sonhos. A realidade, porém, é que chegáramos mesmo ao fim.
A exaustão venceu-me. Bebi, lentamente, de uma taça de vinho, pensei em telefonar – como se fosse necessidade extrema – a uma ainda muito amada mulher, mas não o fiz. Seria inútil. Deitei-me sem qualquer resistência. Antes, porém, de um último fiapo de lucidez, pensei ter compreendido o que acontecia: eu queria apagar-me, paralisar o raciocínio, espantar, repudiar sentimentos, emoções. Eu não estava em busca do Nirvana. Nem do Paraíso. Tudo o que eu queria era mergulhar no Nada. Não como fuga. Como encontro.
Acordei algumas horas depois, madrugada. Não me lembrei de sonhos, pesadelos, inquietações, de um dormir agitado. Despertei como se algo me houvesse purificado. Não consigo explicar, mas foi um reavivar por assim dizer miraculoso, como que espiritualmente transfigurador: metamorfose, delírio, loucura? Não sei. O fato é que acordei o mesmo homem envelhecido, beirando os 80 anos, vivido, machucado, experiente – mas com respiração de inocência, de irresponsabilidade, com atrevimento de criança.
Acordei e me vi como realidade nova, ainda mais confusa, verdadeira e mítica, concreta e abstrata, simples e composta. Mas estranha, esquisita, assustadora e alegremente única. Naquele despertar durante a madrugada, eu me vi um ser inteiro, pleno, consciente de todas as contradições. Com a carne titubeante da velhice, com as marcas e dores do tempo vivido – mas com alma leve como a de criança, espírito de adolescente. Voltei a acreditar no impossível, reconhecendo o homem velho em mim, mas respeitando-o como meu mestre, sem renegá-lo ou ausentar-me dele.
Foi um paradoxo misterioso e desafiador: uma criança com 80 anos; um octogenário com coração de criança? Entendo, pois, estar no fim de um começo e no começo de um fim. Fiquei longos meses sem escrever, por exaustão e problemas de saúde. Essa ausência de mim mesmo foi-me mais angustiante do que o estresse agudo e a enfermidade. Pensei nada mais tivesse a dizer, tolice do cansaço. Compreendi-o agora: a dizer, há muito mais do que antes. É a escritura dos últimos tempos, os meus, “in extremis”, o confiteor de um viver “humano, demasiado humano.”
Perguntava-me desanimadamente: “Escrever por quê? Para quê? Por quem? Para quem?” A partir de um despertar, isso não mais importa. Estamos no caos e ninguém mais tem certezas ou respostas. Também eu, não as tenho. O verdadeiro desafio está em reaprender a pensar. E, então, recomeçar. De minha parte, preciso escrever “por quem e para quem os sinos dobram.” Por e para mim e a cada um de nós.
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