Causos caipiras: “Não presta morrer brigado”

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Cemitério da Saudade

Esse texto foi publicado em agosto de 1988 no semanário impresso A Província. Recuperamos para lembrar os 30 anos de atuação em Piracicaba.

Experimente só você morrer brigado com alguém muito próximo pra ver o que acontece! Pelo menos os causos da cultura popular garantem que fatos espantosos ocorrem. Tem até quem jure que duas comadres que morrem de mal acabam virando mula-sem-cabeça, que horror, não? Mas isso já deve ser exagero e uma outra história.

Acontece que tem gente afirmando que presenciou fatos incríveis relacionados a pessoas que morreram com raiva de amigos. E que existe a crença de que eles se transformam em almas penadas e que não descansam enquanto não conseguirem o perdão.

O SINAL LUMINOSO

Francisco de Oliveira, de 65 anos, por exemplo, tem um causo muito interessante pra contar. Segundo ele, há algum tempo, morreu uma amiga de sua esposa, mas na época as duas estavam brigadas. Ele não se lembrava mais da coisa, mas teve sua memória reavivada numa noite de lua cheia.

“Eu saí de casa, no sitio, era um sábado e ia para a casa da Cida, que morava perto e sempre fazia uns bailes animados no sábado, em que todo o pessoal comparecia pra se divertir. Minha mulher resolveu não ir, ficou em casa, mas não fez questão que eu fosse, porque sabia que a coisa era de família”

Ele saiu de casa, mas tinha que atravessar um caminho que estava razoavelmente escuro. Foi quando algo despertou sua atenção. “De repente, apareceu bem diante de mim uma luz muito forte. Eu não entendi o que era aquilo, não tinha carro nenhum vindo e nem podia ser um simples vagalume, porque era muito brilhante. Então eu resolvi desviar um pouco, mas não adiantou nada, pro lado que eu fosse ela ia também”

Ficou com muito medo, porque não conseguia entender o que era aquilo. Não teve outra alternativa, deu meia volta e decidiu ir por um atalho. Isso porque também não estava a fim de desistir de aproveitar um arrasta-pé animado na casa da Cida, que isso era bom demais e ele não era de ferro nem nada. “Bom—continua— eu dei a volta, mas quando estava chegando perto, lá estava a luz de novo”.

Aí ele pensou o seguinte: agora não tem jeito, se eu fugir, periga eu dar de cara novamente com esse negócio e vou acabar perdendo o baile, é melhor perguntar logo o que é isso e o que está querendo de mim”. Pois foi exatamente o que fez. “Nisso, a luz ficou mais forte e eu pude ouvir uma voz que vinha de longe. Disse que era a comadre de minha mulher e que estava muito triste porque não conseguiu fazer as pazes enquanto ainda estava viva. E disse que precisava ficar em paz. E isso só seria possível se minha mulher mandasse rezar uma missa pra ela e não ficasse mais com raiva”, conta.

Dito isso, a luz desapareceu e Francisco pode ir à festa. Mas nem aproveitou muito, ficou o tempo inteiro pensando no que tinha acontecido. No dia seguinte, não contou nada para a esposa, achou que ela não iria acreditar. “Mas eu aproveitei, como quem não quer nada, comecei a falar da comadre com ela. Disse que elas tinham sido tão amigas e que não valia a pena ela ficar ainda remoendo mágoa da outra, isso não era bom pra ela. Pois é, isso adiantou, porque ela concordou comigo, mandou rezar uma missa e até levou flores para o túmulo da mulher”. Se ele acha que isso resolveu a questão? “Eu acho que sim, pelo menos eu nunca mais vi luz falante nenhuma na minha frente”.

O PERDÃO DA MÃE

Maria Tereza de Lima, de 33 anos, tem também um causo a esse respeito, diretamente ligado a sua família. “Acontece que quando o meu pai se apaixonou pela minha mãe, ele era mais novo e bem mais rico que ela. E minha avó sempre foi uma mulher autoritária, não permitia de maneira nenhuma o casamento. Disse que se ele fizesse isso, ela jamais o perdoaria enquanto ele vivesse”.

Pois é, mas confirmando as suspeitas de que o amor às vezes é mais forte do que essas repressões, o pai da Maria Tereza acabou se casando mesmo, mas antes teve que fugir de sua cidade e vir para Piracicaba. “Mas eu sempre percebia que, mesmo estando certa da sua decisão, ele guardava a mágoa de ter causado um desgosto pra sua mãe. Porque a minha avó nunca veio nos visitar nem fez questão de conhecer os netos”.

Até que chegou uma época em que seu pai começou a ficar muito doente, mesmo ainda sendo bastante jovem. “Então, um dia ele morreu. Foi uma coisa que me marcou demais, porque eu vi tudo acontecer. E me lembro que ele pediu pra mim e a minha mãe que avisassem logo a minha avó e que ela o perdoasse”.

Maria Tereza diz que, mal recuperadas da emoção, estavam pensando em como avisar a mulher. Foi quando algo inesperado aconteceu. “Bateram na porta, eu fui atender, era uma senhora. Perguntei quem eu era e disse que era a minha avó. E quis saber se era verdade que ele tinha morrido. Eu não entendi como ela sabia, mas disse que coração de mãe sabe tudo e nunca se separa do filho. Só que ela foi muito brava com a gente, disse que tinha certeza que nós iríamos acabar mesmo matando o seu filho e foi o que aconteceu”.

Passado algum tempo, Maria Tereza diz que voltaram a receber a visita da avó, mas desta vez de maneira bastante diferente. “Ela disse que queria esquecer o que passou. E revelou que meu pai apareceu várias vezes para ela pedindo que desse o seu perdão, só assim ficaria tranquilo. E isso fez com que ela mudasse bastante sua atitude. “Não diria que ela é muito chegada, mas pelo menos nos trata com respeito. Isso porque só de pois de morto é que ela soube entender o filho”.

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