Em 1987: Festa de lemanjá

O texto abaixo foi publicado em dezembro de 1987 no semanário impresso A Província. Preservamos datas, idades, comentários e gramática originais do texto.

piracema2 (2)

“Aqui neste terreiro, o Divino é nosso pai. Os filhos do Divino balanceiam, mas não caem. Pise na Umbanda, mas pise devagar”. O refrão é de uma música dirigida aos orixás, acompanhada pela adija, um chacoalho utilizado no candomblé para puxar os guias, e pelo atabaque, um tambor que pertence ao ritual de Umbanda e candomblé para chamar os guias na terra. Os médiuns, em forma de círculo dançam, acompanhadas pelo som dos dois instrumentos, para a incorporação do guia, seguindo a voz de Ogan que canta os pontos.

Esse ritual preencheu a quarta Festa de lemanjá, a mais famosa dos orixás femininos, no último sábado à tarde, na rua do Porto, reunindo seguidores do culto e curiosos. A maioria deu presentes a lemanjá como sabonetes, perfumes, flores e champagne, que foram depositados em um barco enfeitado com flores brancas e depois jogados no fundo do rio Piracicaba.

A maior parte das pessoas que foi à rua do Porto, no dia 28 de novembro, vai à Igreja Católica na próxima segunda-feira, para rezar à Imaculada Conceição e coroar a imagem da santa, ao som da voz do Padre Jorge Simão Miguel, na matriz da Vila Rezende. Os devotos da Santa cristã farão orações para que os pecadores sejam perdoados, inclusive os que estiveram no ritual da umbanda, pedindo ajuda e agradecendo à lemanjá.

A Santa é a mesma

lemanjá é carinhosa, mas intolerante com seus ofensores. Tem um jeito maternal e seu corpo grande com os seios destacados fixam a imagem da mãe enérgica, mas totalmente voltada para os filhos. É capaz de gestos muito generosos e de grandes sacrifícios. Ela surgiu  pela primeira vez na África como a deusa da água doce e acabou sendo identificada no Brasil e em Cuba como a deusa da água salgada.

A explicação é de benedito Gomes Leão do Templo de Umbanda “Ylé de Oxalá”, que levou todos os presentes de Iemanjá para o rio Piracicaba. “lemanjá foi catuada em água doce. O brasileiro mudou tudo. Vestido de branco e usando três colares de missangas com cores que representam a orixá feminina (azul, branco e transparente), tanto no candomblé como na Umbanda. Benedito diz que a “umbanda é genuinamente brasileira”, derivada do candomblé, religião de origem africana que criou raízes no Brasil na época da escravidão. “O ritual do candomblé é mais caro, pelo material usado dos trabalhos e pelas penitências que se tem que fazer para os santos”, explica. Terreiro de umbanda, segundo ele, pode ser aberto por qualquer médium, “desde que seja fiel aos rituais dos santos”.

Medo? As pessoas têm. Por isso, os terreiros de umbanda e da província resolveram se reunir e mostrar ao público que os orixás não fazem mal a ninguém. Desde que não sejam provocados. “O medo é um velho problema. Estamos divulgando o ritual para que haja uma desmistificação dos nossos trabalhos. Nós sabemos que tem gente que faz trabalho no fundo do quintal e faz besteira. isso as pessoas têm medo”, salienta.

E o medo vem desde a época da escravidão no Brasil. Os negros trouxeram da África sua cultura religiosa, a devoção aos orixás. Mas logo de cara foram considerados pagãos pela Igreja Católica proibidos de prestarem homenagem a seus santos. Usaram, então, a criatividade. “Tapearam a Igreja”, diz o folclorista Hugo Pedro Carradore, o responsável pela união dos templos que foram à rua do Porto. “Eles faziam de conta que estavam orando para Imaculada Conceição, mas pensavam em lemanjá. Homenageavam Jesus Cristo, saudando Oxalá.”

Ritual proibido

A história da escravidão já  tem quatro séculos. E a igreja ainda proíbe os rituais aos orixás. O padre Firmino, da Paróquia de São Dimas, diz que a devoção aos orixás é um transe psicológico e é “condenado pela Igreja”. Mas ele reconhece que quem vai aos templos espíritas “é em busca de conforto para problemas pessoais”.

Já o monsenhor Jorge Simão Miguel, que coordena toda a comemoração crista à Imaculada Conceição observa que “a mistura dos santos é para chamar o povo”. Para ele, os seguidores da umbanda e candomblé usam imagem de santos católicos para “chamar a atenção nas festas”.

O padre lembra que a Igreja proíbe dentro da própria Igreja — ou seja, aos cristãos, o culto aos orixás. Observa, porém, que o poder que exerce sobre os fiéis é limitado, já que a maioria dos católicos vai em terreiro e acrescenta “a Igreja não pode interferir numa festa aberta”.

E não pode mesmo. O que tinha de católico oferecendo presentes a lemanjá no sábado passado, não estaria escrito em gibi nenhum. O próprio coordenador de Turismo da província, José Maria Paes e Silva, o Japão, foi em terreiro de umbanda. “Já fui e não tive medo. É um ritual diferente da Igreja Católica e dos evangélicos. O deles é mais agressivo, mas simbólico e talvez choque quem nunca viu.” E afirma: “Fui, mas sou católico”.

A intenção de Japão é transformar a Festa de lemanjá num ponto turístico da província. Ele só tem que acertar com os  data fixa, pois a festa vem acontecendo há quatro anos, em datas irregulares. “Acho até que virou tradição na cidade.” Ele fala que a festa tem tudo para crescer, principalmente por ser popular. “É um atrativo bonito. Quem sabe, talvez, possa ganhar mais adeptos.”

Divisões

lemanjá (ou Imaculada Conceição) é representada de formas diferentes na umbanda e candomblé, caracterizadas no ritual, nas roupas e até no modo de vir à terra. As cores que predominam são azul, branco e rosa (as preferidas da santa) e seu dia é o sábado. No candomblé, ela aparece com um véu tapando o rosto e na umbanda, usa coroa em forma de estrela.

Todos esses detalhes foram bem salientados na Festa da rua do Porto. É que a dona Maria de Oxalá tentou mostrar para o povo que foi à beira do rio; no sábado, que todos os santos com que trabalha têm poderes sobrenaturais e são dóceis com as pessoas. Na roda de dança, para chamar os guias, os homens estavam com calça e camisa branca e as mulheres usavam vestidos longos de renda, com saia armada.

A seu lado, estavam os médiuns com roupas dos santos. O umulu vestia uma roupa de palha. Ele é o guardião dos cemitérios e muito procurado pelos leprosos, estando sincronizado com São Lázaro, o santo dos doentes na Igreja Católica. Tinha a Iansã, com roupa vermelha, ela é a deusa da tempestade. Ogum, com espada na mão e um traje azul, tem a força e é considerado na umbanda como o deus da guerra. Uma moça, com as mãos unidas, vestia-se como Nossa Senhora Aparecida, usando um manto azul, bordado de pedras brilhantes e uma coroa, lembrada como Santa Ana dentro do sincretismo da linha dos orixás da água.

 

Deixe uma resposta