Uma festa para os quase inúteis (V)

Em 1989, quando José Maria Ferreira quis me presentear com uma exposição comemorativa dos vinte anos de carreira, simplesmente preferiu omitir uma mostra montada um ano antes no salão térreo da Igreja Metodista, talvez pela não divulgação na imprensa. De longe, não há como negar, a exposição naquele final de semana marcava a influência de minhas raízes vindas do berço Metodista. O fato é irrelevante, de caráter apenas pessoal, como estas linhas que escrevo e que ainda não sei porque estão sendo publicadas.

O título que dei à exposição que José Maria montou no SESC foi “Das peças quase inúteis” e deixava patente meu pessimismo diante de minha atividade como artista expositor. Tudo é pessoal. E era como via as centenas de desenhos que permiti a alguém observar, pela primeira vez me escapavam das mãos. O amigo examinou um a um, fase a fase, os auto-retratos, eróticos, desenhos de familiares e amigos, de objetos, de plantas, de paisagens, rabiscos de anos de trabalho. Cada desenho era uma peça inútil, ou quase inútil. Sei lá por quais razões José Maria alterou o título que eu formulara para “Objetos quase inúteis”, reportando-se a alguns desenhos que tinham por tema canetas, vidros de tinta, torneira velha, ferramentas, e outros. Apenas 35 desenhos foram para a exposição hospedada no SESC. José Maria escreveu no catálogo:

“Cada vez mais refinado, o desenho de Araken Martins persegue incessantemente um desejo de síntese, de eliminação do circunstancial, e sobretudo de clareza (e claridade) tanto no que se refere ao visível (o traço sobre o papel) quanto ao invisível (as idéias e o processo de criação).

Esta exposição, que assinala seus vinte anos de vida artística, procura sintetizar através de 35 desenhos produzidos ao longo das duas últimas décadas, uma trajetória que na realidade é uma circunferência, ou melhor, uma espiral. Ela começa e termina no interior de um “quarto escuro” que é também a concha e um caracol.

Neste interior convivem a memória, a solidão, os sonhos e a expressão erótica, os gatos e os “objetos quase inúteis” que dão título à exposição. O universo do artista, essencialmente doméstico e prosaico, é no fundo o universo de qualquer pessoa.

A arte transfigura personagens e cenários e cria uma transcendência só possível para quem mergulha fundo em seu próprio universo e se dispõe a explorar os seus desvãos. Seus personagens dormitam, mas a vida pulsa neles, até mesmo no esqueleto de um peixe de olhos amarelos, vigilantes.

A realidade é apreendida e compreendida através da contemplação, também no sentido místico do termo. Um caminho ‘zen’, dir-se-ia. Daí a impressão de orientalismo que transmitem estes desenhos tão ocidentais. Uma sensação acentuada pela quase ausência da cor e por certos traços tão sintéticos que lembram ideogramas.”

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