“Anos de Chumbo”: tortura em Piracicaba (4)

download (19)A terrível cumplicidade de jornalistas

Cecílio Elias Netto

O demônio de nome Lazinho – com sua coorte de asseclas também demoníacos – conseguiu silenciar e amedrontar os três poderes – Executivo, Legislativo, Judiciário – na maioria dos seus representantes. E fomou uma quadrinha que se tornou altamente especializada em espalhar, semear e aplicar o terror, sob as mais degradantes formas para as suas vítimas. Um grupo de advogados fez-se parte dessa quadrilha da forma mais vil e vergonhosa. Lazinho prendia, avisava alguns advogados e estes cobravam, das vítimas, o dinheiro que seria repartido com o monstro mor.

Não foram, porém, apenas advogados. Desgraçadamente, jornalistas e fotógrafos locais participavam das encenações, fotografando e relatando como legítimas as farsas que Lazinho montava com suas vítimas. Ele as apresentava como traficantes, “plantando” drogas em suas residências, em suas roupas e, após as torturas, mostrando-as aos jornalistas que, com sensacionalismo, publicavam-nas “Jornal de Piracicaba”, como “grandes feitos policiais”.

A imprensa local tem, sim, do que se envergonhar àquele tempo. Por isso, envaideço-me de – com meus valentes ou malucos companheiros – ter enfrentado toda aquela miséria moral. Foi uma das formas de jornalismo mais desesperadas que exerci, arriscando a própria vida, as de meus companheiros, de minha família para denunciar e protestar diante daquela crueldade. Sinto hoje, passados tantos anos, que a indignação nos deixou cegos aos perigos pelos quais também passávamos. Desgraçadamente, a “imprensa grande” só enxergava o que acontecia nas capitais brasileiras. Para ela, o horror e o terror existentes nas cidades interioranas não existiam. Também sem apoio dos colegas de imprensa, ficamos nós.

Escreve-nos, uma leitora, que eu tive sorte. Não acredito. Foi Deus que nos protegeu.

 

José Carlos, advogados pagam Lazinho

 Eu, José Carlos de Mello, brasileiro, solteiro, 28 anos, profissão eletricista, residente e domiciliado à rua Guaporé (Travessa Particular), 17, tenho a declarar, de minha livre e espontânea vontade, o que segue:

1 – No dia 4 de junho, fui detido, juntamente com Antonio Ciancie (Nicolinha), na praça José Bonifácio, por volta das 23,30 horas, quando estávamos ouvindo a música que vinha do Clube Coronel Barbosa; algemado, fui levado junto com “Nicolinha” para o Galáxie onde estavam alguns homens, tendo reconhecido de imediato Lazinho, Fininho e Dore e Maquinista; exigiram que não fizéssemos barulho e fossemos por bem, quando pedimos que não precisavam nos algemar;

2- Chegando à Delegacia, Galo e Lazinho foram me empurrando até a porta da cela, deixando a mim e ao Nicolinha até as duas horas da madrugada;

3 – Depois, nos levaram para um banheiro, no fundo da Delegacia, onde nos obrigaram a tirar as roupas, deixando-nos nus; primeiro, tiraram a roupa do Nicolinha. Explico melhor: levaram o Nicolinha primeiro e eu fiquei na cela, ouvindo os gritos do meu amigo e fiquei logo sabendo que ele estava sendo torturado;

4 – Depois de uns 40 minutos, trouxeram meu amigo Nicolinha para a cela e ele estava todo machucado. Não deu nem tempo de conversar com ele e o Lazinho e o Jurandir já me levaram para o banheiro do fundo da Delegacia, onde funciona a tortura, digo, a sala de tortura. Lá, fui obrigado a tirar a roupa e amarraram meus dois braços e as pernas, me pendurando em um cano apoiado em dois cavaletes de um metro, mais ou menos, de altura, cada um;

5 – Então, o Jurandir ficava com o pé na minha garganta, enquanto o Lazinho batia com murros e tapas. Quando eu queria gritar, o Lazinho molhava a minha cueca, espremia a água em meu rosto e enfiava a cueca molhada em minha boca; depois, o Jurandir ameaçou me queimar com cigarro ou cortar o meu pescoço com um facão que ele tinha na mão;

6 – Eles queriam, por força, que eu contasse que tinha em minha casa entorpecentes, tóxicos, etc., dizendo que o “Nicolinha” havia contado que eu tinha essas coisas em casa. (Depois, eu soube que o Nicolinha havia me denunciado porque não resistira aos espancamentos). O Jurandir lamentava “estar quebrado o aparelho de dar choque, senão eu ia tomar choque até soltar a minha língua para contar tudo”.

7 – Depois, Dore, Lazinho, Galo e Jurandir me levaram até minha casa para revistá-la, nada encontrando. Depois, me levaram, novamente, para a Delegacia, ficando eu na cela junto com o Nicolinha. No dia seguinte, o carcereiro nos colocou no “corro”, a “cela correcional”, onde ficamos até a tardezinha.

8 – Quando saímos, fomos, eu e meu amigo Nicolinha, algemados até a sala do Delegado, onde estavam o dr. Messias, o Tenente Paulo, o Abud e o fotógrafo Filetti. Então, o Lazinho apanhou um monte de ampolas e cartelas de estanamina, dizendo que dois dos saquinhos plásticos estavam na minha casa e, então, tiraram a fotografia que saiu no “Jornal de Piracicaba”;

9 – Saindo de lá, contei o que acontecera ao Tenente Paulo e ele disse que era preciso bater para a turma contar tudo e “dar o serviço” e que “homem, quando não deve, apanha e não conta”. Daí, voltei para a correcional e, quase uma hora depois, me tiraram de lá e o advogado dr. José Gorga disse para o Lazinho: “É esse o meu homem”. O advogado fora contratado pela minha amiga, Ana Maria Brok, que me disse, depois, que lhe pagara 500 cruzeiros e que o advogado disse que ia ficar apenas com 200 cruzeiros e que os 300 “eu tinha que dar para os homens, lá na Polícia”;

10 – No dia seguinte, o dr. Gorga me telefonou, dizendo que era melhor eu fugir, porque “o negócio estava feio”, afirmando que o Reinaldo (trata-se de Reinaldo Bertaia) teria sido preso novamente; então, levei minha amiga para São Carlos, voltei para Piracicaba, contei o que acontecera ao meu patrão, Reginaldo Perina, pedindo-lhe conselhos; daí, o meu patrão disse que iria conversar com um advogado, dr. Vlademir Beraldelli, que era amigo do Lazinho, para ver o que podia fazer; depois, o Reginaldo foi até o referido advogado e me contou que este conversou com Lazinho e ofereceu um dinheiro para que o Lazinho deixasse de me importunar; o meu patrão me contou que deu 500 cruzeiros para serem entregues ao Lazinho.

A partir daí, não fui mais importunado por ninguém da Polícia. É o que tenho a declarar, esperando que seja feita Justiça.

Piracicaba, 26 de junho de 1972

José Carlos de Mello

 

Celina, sob a vistas do repórter

 Eu, Celina Carvalho, residente e domiciliada à Av. Independência, 354, casada, tenho a declarar o que segue, assumindo inteira responsabilidade das minhas declarações, pedindo, no entanto que se guarde, em caso de publicação, sigilo sobre o meu nome, para evitar represálias por parte da Polícia:

1 – No dia 19 de junho de 1972, ao voltar para minha casa, retornando de um centro espírita onde eu me encontrava, encontrei, em minha residência, os investigadores Lazinho, Fininho, Jurandir e um outro que eu não conhecia; ao chegar, encontrei a minha filha chorando, com o braço paralisado e a boca paralisada;

2 – vendo aqueles homens em minha casa e, pelo fato de minha filha estar, ou melhor, ter o sistema nervoso abalado, fiquei desesperada, com medo de que tivessem feito alguma coisa para ela;

3 – diante do meu desespero diante do estado da minha filha, quis chamar um médico e comecei a fazer cuidados caseiros até que ela se acalmou e, então, os quatro homens se identificaram como gente da Polícia, forçando a mim, a minha filha e a mais duas mulheres que estavam na minha casa a irem até a Delegacia;

4 – Na Delegacia, as duas mulheres e minha filha foram ouvidas antes de mim e eles se negaram a que eu chamasse um advogado, exigindo que eu confessasse coisas que não tinha feito;

5 – Cheguei a me ajoelhar aos pés do investigador Lazinho, pedindo pelo amor de Deus para que chamasse um advogado e fui, então, forçada a prestar declarações sobre uma sindicância que eles pretendiam fazer sobre casas suspeitas em Piracicaba;

6 – O Lazinho tinha conhecimento de outras casas suspeitas e não tomou qualquer providência, ao passo que o investigador Fininho, eu falei para ele, na presença de todos, que ele frequentava o Hotel Copacabana, ficando ele todo desajeitado por saber que eu conhecia as malandragens dele e que sabia, também que eles iam a todas as casas suspeitas e não faziam para as outras o que faziam para mim;

7 – O advogado Raul Abrahão, que foi chamado por minha filha, exigiu um cheque de 2500 cruzeiros de minha filha, sabendo que não tinha fundos e apenas com muito custo consegui, depois, reaver o dinheiro;

8 – Minha filha, Janete Trevizan, foi obrigada a prestar depoimento contra mim, sua própria mãe, contando-me, depois, que, quando eles entraram em minha casa, começaram a dizer palavrões, fazer propostas obscenas, tomar café, usando de minha casa como se fosse a própria casa deles;

9 – A verdade é que eles sabem o que está acontecendo em Piracicaba e apenas cuidam de quem cai no desagrado, estando o repórter Tuca ligado a eles, fazendo questão de usar sempre o meu nome de solteira, Simionato, já que se trata de família muito bem relacionada em Piracicaba.

Era o que tinha a declarar, sobre os maus tratos e a violência policial.

Piracicaba, 26 de junho de 1972

Celina Carvalho

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