“Anos de Chumbo”: tortura em Piracicaba (3)

O silêncio medroso das autoridades

Cecílio Elias Netto

A “ditadura de Lazinho” em Piracicaba – imitando e repetindo os horrores que aconteciam nos subterrâneos do DOI-CODI – não apenas impôs a violência e a tortura física, mas, também – e o que foi pior – o medo da população, incluindo autoridades. O policial tinha tanta certeza da impunidade que, em seu “jeep”, rodava pela cidade mostrando ostensivamente um fuzil. Para tentar intimidar “O Diário”, ele passava – com suas mulheres a bordo – diante da redação, apontando-nos o fuzil, na descarada demonstração do que pretendia fazer ao jornal e a nossos jornalistas. O principal alvo, obviamente, era o diretor e proprietário do jornal, eu próprio.

A covardia e a omissão das autoridades foi vergonhoso. Elas se deixaram dominar pelo medo, num perído em que o Brasil estava entregue às leis da tirania, cujo ditador inspirava o surgimento de “ditadorezinhos”. Estes eram, ainda, mais perigosos,pois se lhes tornava mais fácil intimidar uma população de cidade média. Lazinho dedicava-se ao tráfico de entorpecentes e, usando de seus poderes ilimitados, perseguia os traficantes concorrentes. Um dos objetivos de seu terrorismo era aterrorizar a classe média alta, onde muitos jovens estavam, já dependentes, de drogas. Localizava-os, prendia-os, comunicava a advogados amigos e estes se encarregavam de chantagear os pais para extorquir dinheiros. Advogados cobravam alto, alegando ser preciso “dividir com Lazinho e outros policiais”.

Lazinho chegou ao desplante de revelar – certamente para aterrorizar ainda mais as vítimas – que as ordens de tortura “vinham do Capa Preta”, o juiz. Piracicaba amedrontou-se e silenciou. Repetia-se aqui o que acontecia no DOI-CODI, por onde passaram – de 1969 a 1973 – mais de duas mil pessoas. Enfrentando a situação, O DIÁRIO divulgou todos os depoimentos das vítimas dos monstros que dominaram a Polícia e os demais poderes de Piracicaba A seguir, novas declarações.

Alfredo José, e “ordem da “ Capa Preta”

Eu, Alfredo José Mateus de Oliveira, brasileiro, 25 anos, solteiro, residente à Rua Moraes Barros, 1947, declaro o seguinte:

– No dia 9 de junho, por volta das 13 horas, no centro da cidade, os investigadores Lazinho e Galo me agarraram na calçada e me algemaram. Puseram-me numa perua rural Willys, vermelho e gelo, e me levaram para a Delegacia, direto para um banheiro existente embaixo do prédio do presídio.

– Passaram um cano por baixo dos meus joelhos, amarraram-me, e me penduraram de cabeça para baixo. O investigador Lazinho subiu em cima do cavalete, e me perguntaram quais policiais estavam envolvidos no tráfico de entorpecentes e qual os meios pelos quais o Valdir tinha matado o motorista de praça. Eu não falei nada, porque não sabia de nada. O Lazinho, de cima do cavalete, pegava um podão de cortar cana e me batia com toda força na sola do pé. O Fininho, por sua vez, com uma latinha de Skol, jogava água no meu nariz… Isso durante umas 3 horas. Eles queriam saber, também, de gente rica que pudesse estar envolvida com entorpecentes. “Pé de chinelo não adianta porque não tem tutú”, diziam eles.

– Só pararam quando alguém avisou que eu estava gritando muito alto, e que era possível que o Juiz Corregedor fosse até lá, para ver do que se tratava. Aí eles pararam.

– Levaram-me, então, para uma outra sala, e me amarraram com duas algemas nos braços de uma cadeira. Na sala, o Lazinho, dizendo que eu tinha 27 milhões de cruzeiros em letras de câmbio e uma casa no valor de 50 milhões, queria fazer comigo um acordo: ele queria uns 40% desse dinheiro, para dividir entre os outros investigadores. Por sinal, eu tinha no bolso, na hora que fui preso, uns 512 cruzeiros. Lá no banheiro eles me tiraram 200 cruzeiros.

– Eles me jogaram na solitária, onde fiquei até por volta da meia-noite. Depois que fui solto, meu pai me contou que lá esteve com o dr. Winston Sebe, e que o Lazinho disse a este que o meu negócio era “bravo”, e que a libertação ficava em 200 cruzeiros, com a condição de que eu fosse internado, porque, disse ele, que eu estava demente, que eles me encontraram cambaleante na praça, de tanto tóxico que eu teria tomado.

– Eles me disseram para eu sumir da cidade, porque a onda não estava boa, se não eles iriam arrumar, ainda, um flagrante para mim.

– E disseram mais: “Se você fizer queixa, ou exame de corpo delito, aí é que nós vamos arrumar sua cama aqui!”. Eu tinha ferimentos nos braços, punhos, um hematoma no olho esquerdo, e a sola do pé ferido e ultradolorida. Na região estomacal, eu tinha dores muito fortes, por causa dos socos e chutes que levei.

– Eu ouvi o Lazinho dizer que eles estavam fazendo aquilo “por ordem do Capa-preta”. Eu entendi que eles se referiam ao Juiz de Direito.

O que está acima é a expressão da verdade.

Piracicaba, 26 de junho de 1972

Alfredo José Mateus de Oliveira

 

 

Altevir, tortura nos genitais

Altevir Cantão, brasileiro, militar, residente e domiciliado em Piracicaba, à Rua Bernardino de Campos, 1881, tenho a declarar o que segue, assumindo a responsabilidade pelas declarações, requerendo apenas seja mantido o sigilo de meu nome, para evitar represálias:

– Meu irmão, Ademir Antonio Cantão, viciou-se em tóxicos e teve, durante algum tempo, uma vida desregrada. Em 1970, foi apanhado com um certo Milton Padrão, que transportava este último maconha e que ainda cumpre pena na prisão. Durante quatro meses ficou detido, sendo, no entanto, absolvido pela justiça pública, em processo que correu pela primeira Vara;

– Depois dessa ocorrência, mudou-se ele para São Paulo, passando a trabalhar num supermercado, Vila Maria, recuperando-se de seu vício e passando a ter uma vida normal;

– Há cerca de um mês, veio a Piracicaba a fim de visitar a família e, estando no jardim da Praça José Bonifácio, à tarde, em data que não posso precisar, foi detido pelos investigadores Lazinho, Fininho e Galo que o levaram para a Delegacia de Polícia;

– Durante uma semana, meu irmão ficou detido, sem qualquer motivo, apanhando dos referidos investigadores, especialmente o Lazinho. Foi seviciado de diversas maneiras: choques nos órgãos genitais, chute nos órgãos genitais (dados pelo Fininho), ameaça de afogamento por água que lhe foi despejada no nariz e na boca, enquanto se encontrava amarrado no pau de arara; pancadas com lâmina de facão, na planta dos pés, murros etc.

– Quando saiu da cadeia, seu estado era tal que precisou de um taxi para levá-lo para casa, medicando-se, antes, segundo nos informou, no Pronto Socorro. Não posso precisar a data, porque o meu irmão está atualmente preso, novamente, sem qualquer culpa formada, à disposição das autoridades, conforme dizem, para averiguações.

– Meu irmão, depois de uma semana afastado do emprego, acabou sendo dispensado porque os patrões alegaram que ele abandonara o serviço, estando os seus documentos até hoje na empresa em São Paulo;

– Passaram-se uns dias depois que foi liberado e, agora, há 12 dias se encontra detido novamente na Cadeia Pública de Piracicaba e eu não tenho informações sobre o seu estado, a não ser que ele está à disposição das autoridades, estando eu com receio de que, se ficar no “corro”, que é a cela correcional, esteja ele sem comer, como habitualmente acontece com os que ficam na cela, que são alimentados apenas com os restos dos demais presos.

Era o que tinha a declarar, tendo-o feito com a integral vontade minha, sem qualquer pressão ou coação.

Piracicaba, 26 de junho de 1972

Altevir Cantão

(CONTINUA)

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