“Anos de Chumbo”: tortura em Piracicaba (5)

Ruth, mais humana do que Lazinho

Cecílio Elias Netto

Naqueles anos terríveis, tive – com meus companheiros de redação – a oportunidade de estar mais próximo das prostitutas do Jardim Brasil, a zona do meretrício, conhecida como “Ripolância”.  Ruth Mansur era a mais poderosa das cafetinas, dona da principal casa de prostituição e com fortes ligações políticas e sociais. Apesar da exploração que fazia às moças, Ruth – cujo nome verdadeiro era Yvone Mansur – sabia como protegê-las e, naquele período de terror, revelou-se muito mais humana e generosa do que o endemoninhado Lazinho.

A zona do meretrício – por organização do próprio Lazinho e seus capangas – tonara-se o principal foco de distribuição, venda e uso de drogas. Inúmeras vezes, Lazinho usava das prostitutas para “plantar drogas” e preparara falsos flagrantes. Depois de prender, torturar e ameaçar de morte, chamava os advogados da quadrilha e dizia quanto deveriam cobrar das vítimas para, após dividir o dinheiro, soltá-las.

O desespero de homens e mulheres que viviam ou frequentavam o sob mundo era indescritível. Não tinham qualquer segurança, nem a quem buscar, pois Piracicaba tinha-se tornado uma terra sem lei. Os que não eram nascidos naquele tempo não poderão avaliar o que tenha sido o terror que pairou sob Piracicaba. Mesmo os que apenas “ouviram falar”, ou eram crianças à época, precisam de imaginação muito fértil para entender toda aquela tragédia.

Regina Célia, prostituta, foi uma das vítimas preferidas do demônio chamado Lazinho. De minha parte, sinto toda a indignação voltar, ainda mais amarga, com a pergunta para a qual não tenho resposta, a não ser a de responsabilizar toda a comunidade: “Como foi possível acontecer tudo aquilo”?

O leitor precisa ter estômago forte para ler esses depoimentos dolorosos.

Jamil Antônio, “lá não existe Deus”

Eu, Jamil Antonio, brasileiro, 45 anos, casado, comerciante, residente à rua Marechal Deodoro,1317, declaro a bem da verdade todo o que segue:

– No dia 4 de junho deste ano de 1972, estando eu no Bar do Garcia, na rua do Porto, por volta das 22 horas, quatro pessoas (entre as quais estavam Lazinho e Galo, como fiquei sabendo depois) num carro “Galaxie”, algemaram-me, logo depois de perguntarem pelo meu nome e apelido, pondo-me aos empurrões dentro do carro. Dentro do carro, me deram uns dois ou três murros, por motivos que até ignoro.

– Na Delegacia, ordenaram ao carcereiro que me pusessem numa cela incomunicável. Lá fiquei até por volta das 9 da manhã. Aí me tiraram de lá, e me levaram para um quartinho, espécie de banheiro, embaixo do prédio. O Lazinho me mandou tirar a roupa. E me falou: “Eu sei que você é boa pessoa, mas não vá entrar em fria por causa dos outros”. Eu disse que não sabia do que ele estava falando. Ele me disse para eu não dar uma de bobo, e queria que eu desse informações de outras pessoas. Eu conhecia uma das pessoas das quais eles me pediram informações, mas eu não sabia absolutamente de nada que o comprometesse. Aí, foram amarrando um pedaço de coberta nos meus punhos, amarrou-me os braços com uma corda e passou um cano por baixo dos meus joelhos. Aí me penduraram entre dois cavaletes, e eu fiquei de cabeça para baixo. Com um podão de cortar cana, o Lazinho me batia na sola dos pés, e um outro que não sei o nome (parece que é o Jurandir) me dava murro no rosto. Eu pedia pelo amor de Deus que eles parassem. Eles me respondiam que lá não existia Deus e continuaram a bater. Aí, quando a coisa estava ficando feia, eu disse que eu contava tudo o que eles quisessem, mas que eles parassem de bater.

Fiquei no “corro” mais ou menos uma meia hora. Aí eles me desamarraram, trouxeram para cima, e mandaram o carcereiro me botar na grade. Eu só fui sair no dia seguinte (terça-feira) por volta das 10 horas da manhã. Quem foi me soltar foi o dr. Gorga. Eu disse que o meu carro estava preso lá também. Ele me disse que o carro estava liberado, e me entregou as chaves. Mas que eles só entregariam o carro para mim.

– Eu dei 300 contos para o dr. Gorga. Eu achei que estava meio puxado o preço, que eu vivia apertado. Aí ele me disse que para ele mesmo não ia ficar quase nada, que ele precisava repartir o dinheiro com a turma lá de baixo, do contrário, nem me soltariam.

– Na tarde de terça-feira, eu fiquei sabendo que eles estavam querendo me pegar de novo. Aí eu telefonei pro advogado, ele veio até minha casa. Ele me aconselhou a não me expor, a não aparecer na rua, etc. Aí eu vi que não tinha segurança nenhuma aqui, que eles poderiam me pegar de novo e me surrar. Então resolvi fugir, com minha família. Estou fugido há 22 dias, sem poder trabalhar, com medo, sem dinheiro, desesperado, e sem saber o que fazer. Aí hoje um amigo me deu um “alô” de que eu poderia vir, que a coisa estava mudando, e que a turma estava falando a verdade para a imprensa. E eu vim, porque não posso continuar vivendo desse jeito. Eu só tive um casinho, há uns 15 anos, por causa de uma briga, mas depois fui absolvido. Depois disso, nunca mais tive nada. Não sei o que é tóxico, nunca tomei, tenho raiva de quem toma e passa tóxico para os outros. Por isso que não estou entendendo essa perseguição que fizeram contra mim.

Tudo o que estou dizendo acima é a pura verdade, e o meu desejo é que essas coisas não aconteçam com outros, e que eu possa voltar a trabalhar em paz.

Piracicaba, 27/06/1972

Jamil Antonio

 

Benedito da Silva, invasão de residência

Benedito Pereira da Silva, casado, cinco filhos, residente à avenida Piracicamirim, 2969, no dia 19, às 15 horas, estava tomando conta do bar de sua propriedade, em companhia de seu empregado, Antonio Carlos, maior de idade, e três fregueses, quando chegaram quatro investigadores, Lazinho, Galo, Fininho e um outro, que, armados, invadiram o bar, dando voz de prisão. Revistaram o bar inteiro, fazendo desordem tremenda e destruindo. Em seguida, começaram a abrir buracos em volta do bar, procurando tóxicos. Eu repetia que nunca trabalhei e nem usei tóxicos, porém eles insistiam, diziam: “Você vai contar onde estão os tóxicos, onde está a maconha”. Algemaram a mim, meu empregado e os três fregueses, levando-nos para minha residência. Lá chegando, invadiram a casa, nós algemados no carro (uma perua vermelha e branca). Lazinho e Fininho entraram na minha residência, arma em punho, sem pedir permissão a ninguém. Quando minha esposa percebeu (isso ela me contou depois) eles já estavam na sala; as crianças corriam assustadas. Revistaram tudo, não encontraram nada que me comprometesse. Levaram um rádio portátil e um relógio de pulso, o relógio era de minha mãe, e não sei por que levaram esses objetos embora. Voltaram ao meu bar, de onde retiraram um aparelho de televisão, meu relógio, um “Orient”, um outro relógio, uma máquina fotográfica. Levaram-nos para a Delegacia, onde ficamos na correcional. Levaram primeiro o menino para apanhar. O Antonio Carlos, quando voltou para a cela, estava desmaiado. O segundo a ir, levado pelos investigadores Lazinho, Galo e Jurandir fui eu. Chegando numa espécie de banheiro, mandaram que eu tirasse a roupa, amarraram-me as mãos e pernas, penduraram-me de ponta cabeça num cavalete. Eu continuava a dizer que não tinha nada com o negócio de tóxicos, que lutava para sustentar a família, que era pobre, que eles não fizessem aquilo. Eles insistiam, e diziam que eu teria que fazer uma confissão. Apanhei durante uma hora e meia, sendo que Lazinho era o elemento que batia, com um podão de cortar cana, nas solas dos meus pés; depois passaram a me dar choques, com uma máquina de manivela, um fio ele me amarrou na mão, o outro fio era encostado nas costelas, nos órgãos genitais, enfim, nas mais diversas partes do corpo, mas mais nas partes genitais. Como eu nada dizia xingavam a gente de tudo quanto é nome, inclusive de corno (minha esposa é honestíssima, eles não tinha o direito de dizer uma coisa dessas). A gente fica humilhado, quebrado, sente-se o último dos homens. Nada disse, pois nada tinha a dizer: nunca estive metido com tóxicos. Enquanto estava preso minha esposa procurou advogado, o dr. Orlando Veneziano. Quando acabou a tortura, retiraram eu do local, sendo levado de volta à cela. Eles diziam, quando a gente ia cruzar com alguma pessoa, para não mancar e andar reto, senão ia apanhar mais. Quem batia na gente era o Lazinho, que também dava os choques. Um outro girava a manivela da máquina. O Galo acompanhava tudo, com um revólver na mão, dizendo: “Entrega, é melhor para você!”. Entregar o que, meu Deus?, dizia eu. Jogavam água no rosto da gente, afogando pelo nariz. A gente fica zonzo, não sabe o que fazer; os pés ficam adormecidos com os golpes; a gente quer morrer. De volta à cela (não sabia o que acontecera com os três fregueses, mas depois soube que foram libertados sem tortura). Fiquei quatro dias preso; ninguém me perguntou mais nada. Soltaram eu e meu empregado sem qualquer registro de ocorrência. Tenho batido junto ao meu advogado, dr. Orlando, para receber os objetos que retiraram de meu bar e de minha casa, mas não consigo tê-los de volta. O advogado diz que não sabe se vai conseguir. A gente é pobre, estou gastando dinheiro que não tenho nessa história; fiquei doente com aquela água e espancamento, e reclamar com quem? O dinheiro que esses investigadores estão fazendo eu gastar estou retirando do sustento de minha casa, e tudo em nome da Justiça. Espero que algo seja feito para que a gente possa ter paz, trabalhar honestamente, sem ameaça dessa gente.

Piracicaba, 27 de junho de 1972

Benedito Pereira da Silva

 

Regina Célia, proteção na Zona

Regina Célia Ferreira de Carvalho, 24 anos, declara o seguinte:

No dia 13 de junho, dia de Santo Antônio, estava eu na casa da Mazola, no Jardim Brasil, quando chegaram os investigadores Jurandir, Galo e Maquinista, por volta das 16 horas. Dirigiram-se a mim e à Mazola, dizendo: “Vocês têm que descer conosco, para a Delegacia”. Fomos com eles, sem qualquer contestação. Chegando na Delegacia, colocaram-nos em celas separadas. Meia hora depois, a Mazola foi solta, segundo eu soube depois. Foram para minha cela, ou melhor, o Jurando foi para a cela e perguntou: “Quem é companheira do Sabiá?” Respondi: eu! Ele me levou para o banheiro, lá no porão. Lá estavam o Maquinista e o Galo, que fizeram com que eu tirasse a roupa toda; eles mesmos arrancavam algumas peças da roupa, me amarraram (a moça mostra marcas da corda nos pulsos), passaram um cano travando braços e pernas, puseram-me num cavalete. Ameaçaram dar choques e batidas com o podão, mas não o fizeram. Eu disse que contava tudo o que sabia, mas também que não sabia nada de nada sobre tóxicos; eu não sou viciada e nunca vendi isso para ninguém. Desceram-me do cavalete e mandaram que eu vestisse a roupa. Mandaram que eu esperasse. Ficou o Dore em minha companhia, os outros dois saíram. Voltaram meia hora depois, junto com o Lazinho, o Edson e um outro que veio de Limeira e eu não conheço. Estavam ao todo em 8 investigadores. O Lazinho já chegou dando-me um bofetão, jogando-me ao chão. Perguntei: é aqui a sala de torturas? O Lazinho respondeu: Que nada, aqui é o banheiro, não está vendo? Dá fizeram uma roda. Fiquei no meio. Mandaram que eu tirasse a roupa, fiquei nua; os desgraçados ainda ajudavam a tirar a roupa, rasgando algumas peças. Depois, enrolaram cobertores em meus braços. Lazinho disse (para o Edson): não é assim, faça direito para não deixar marca. Enrolaram meus braços direito, amarraram, prenderam minhas pernas, passaram o cano. Fiquei imóvel. É um horror. Penduraram eu no cavalete, e começaram a bater na sola dos meus pés com um facão. Molharam os cobertores, em volta do pulso, e ameaçaram dar choques. Estava tonta, pernas e braços adormecidos, chorava desesperada; dizia que nada sabia. O Jurandir pegou um bule com água, para despejar na minha boca e nariz. O Edson disse: não faça isso, coitada; fiquei cerca de meia hora apanhando, talvez meia hora, a gente não sabe, perde a noção do tempo. Eles perguntavam: “Onde você foi com o Sabiá, ontem, pegar ampolas?” Eu não tinha saído de casa na segunda-feira. Naquela época eu morava na rua Dona Idalina, 154, na Paulicéia.

Saí do quarto de tortura, com o aviso que eu voltaria para a sala de torturas daí a meia hora. Eu disse que não sabia de nada, que eles explicassem o que queriam saber. Daí o Lazinho me disse: “Você não quer voltar, então vamos entrar num acordo. Você me dá quinhentos contos e vai embora”. Eu disse que não tinha o dinheiro, que se tivesse daria para ficar livre. Ele me disse que eu iria pagar advogado, que ia ficar mais caro ainda. Eu disse que não tinha dinheiro, e que se necessitava de advogado teria que pagar em prestações. Deram-me, então, um papel para assinar. Eu assinei. Estava desesperada e faria qualquer coisa para sair. Assinei um documento que, soube depois, era uma declaração de que eu era viciada. Eu não sou viciada. Mandaram-me embora, avisando que eu estava deportada, teria que sair da cidade. Vendi meus móveis e deixei minha casa, para sair da cidade. Foi quando conversei com a Rute, lá do Jardim Brasil. Ela me disse que não podiam me expulsar da cidade e levou-me para um advogado, o dr. Gastão, que providenciou o “habeas-corpus”. Fiquei na casa da Rute. Depois, o Lazinho me procurou, dizendo que não ia adiantar nada o “habeas-corpus”, que eu estava perdida e tinha trinta dias para sair da cidade. Para a Rute ele disse que não adiantava ela proteger a “menina” (eu), que ele era mais forte e tinha “costa quente”. Estou com medo, não sei o que vai me acontecer.

Piracicaba, 27 de junho de 1972

Regina Célia Ferreira de Carvalho

1 comentário

  1. Delza Frare Chamma em 22/03/2014 às 22:38

    Importante para quem não viveu os terríveis dias da ditadura ler esses depoimentos. Deles ainda sai aquele cheiro do medo que nunca mais deixou as narinas de quem o sentiu em todos os lugares por onde andava ou se escondia no tempo da malvadeza. Esse cheiro entrou na pele, nele grudou e sai ainda hoje pela respiração. DITADURA, NUNCA MAIS!!!!!!!!!!!!!!

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