Tempos em que crianças capinavam as ruas e limpavam calçadas

Leandro Guerrini deixou dezenas de crônicas sobre a vida de Piracicaba e suas lembranças de infância.No texto abaixo, ele relata uma prática dos molequesda primeira metade do século XIX: limpar as calçadas, já que não existiam, ainda, profissionais pagos pela prefeitura para tal atividade:

…”O termo me parece que vinha do passado, pois as posturas municipais legislavam que todo proprietário de casa é obrigado a manter limpa ou capinada a testada dos prédios. Testada era, pois, a frente das casas. A Prefeitura se encarregava da precinta ou guia, bem como da partecarroçável da via pública. Restavam a calçada ou o passeio e mais a sarjeta. A primeira dava pouco trabalho. Ficava sempre ao Deus dará. A segunda era espetete por causa do capim que crescia desabusadamente enfeiando de verde a rua.

Como se observa, na época em que me reporto, ainda não havia o calçamento, nem havia sido criada a turma das faquinhas da Prefeitura – iniciativa que data logo depois da primeira grande guerra mundial. Foi a solução que a ex-Intendência encontrou para manter a cidade limpa, já que nem todos os donose testada entravam na linha. Os faquinhas do começo do século éramos nós, os moleques do momento, que se aproveitavam da circunstância para ganhar uns vinténs. Batia-se palmas nas casas cujas frentes fora invadida pelo campi: “Qué que carpa a sarjeta? Cobro dois vinténs. Muito caro, pago um vintém”. Então, a gente pegava o serviço com vontade e com fé.

Foto: tom Damatta/Olhares

Foto: tom Damatta/Olhares

As ferramentas eram singelas: arco de barril dobrado em dois, ousimples na forma de faca. A capinação às vezes era árdua, quando a genteenfrentava a tiririca resistente. O conhecido capim saia com raiz e tudo, favorecendo a tarefa. No fim da trabalheira, a gente embolsava a moeda, pretinha e querida, como quem guardava um tesouro. Não raro, os garotos topavam com damas meticulosas que, antes do pagamento, vinham examinar se o serviço estava bem feito. Sempre achavam que o repasse era obrigatório, com raiva dos empreiteiros que xingavam a madama, baixinho, para não perder a freguesa. O cartaz próprio também tinha lá sua importância capital. Coincidia, muito raramente, que o fiscal da Prefeitura passasse justo no momento da serviçama.

Credo! Que respeito, que certo temor pela autoridade em trânsito. Capricho redobrado na incumbência. Pedia-se uma vassoura emprestada e a esterqueira amontoada era jogada no terreno baldio mais próximo. Depois, aquele risinho cara-de-pau: Tá bão, seu fiscal?

Nas ruas dos arrabaldes, havia pouca capinação, nenhuma empreitada, pois que cabras e cavalos, flanando negligentemente, aqui e ali, se encarregavam do grosso do trabalho. Esse bichinhos, já nas fumaças do turismo, não imperavam nas ruas centrais, porque a Prefeitura Municipal deitara código proibindo a permanência deles, num princípio de beleza estética.

Como capinador de sarjetas, ganhei minhas primeiras moedas, minha primeira fortuna adquirida com o suor do rosto. Eu, no meu caso, não era obrigado a entregar os cobres em casa. Guardava para meus caprichos de menino pobre, que se resumiam na compra de bolinhas de vidro, papel de seda para manufatura de papagaios e balões…”

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