“Bacalhau na negra, bacalhau na negra”: ordem para chicotear

Nem mesmo os Moraes Barros – conservadores, mas abolicionistas, republicanos fervorosos – podiam contestar: havia preconceitos sérios em Piracicaba à véspera do Século XX. Até alguns meses antes da Abolição, havia empresários insistindo na perseguição aos escravos. No dia 10 de janeiro de 1888, o jornal Diário Popular publicava um telegrama de Piracicaba: “… à chegada do trem de Jundiaí, o povo arrancou das mãos dos quatro capitães-do-mato diversos escravos prisioneiros pertencentes a um fazendeiro do Município.”

Os negros eram, portanto, as maiores vítimas. Conforme ocorrera em todo o País, a abolição dera a liberdade aos escravos mas não lhes permitira condições de integração social. O drama era nacional: em vez de dar emprego e terras ao negro liberto, o Brasil fora em busca do imigrante europeu. Em Piracicaba, eles eram numerosos, especialmente os italianos. Os negros continuavam em subempregos ou vivendo uma nova forma de escravidão. E eles eram muitos, pois Piracicaba, durante a escravidão, tivera uma mancha feia a marcar-lhe a história: fora a terceira cidade de São Paulo em número de escravos, cerca de cinco mil, apenas superada por Campinas e Bananal, conforme o “Almanak Comercial de São Paulo”, do ano de 1887.

Livres mas sem terem sido integrados, os negros eram discriminados na Piracicaba de 1900. Eles eram chamados apenas de “pretos”, de “gente preta” ou da “classe preta”, tanto no cotidiano das pessoas como pela imprensa. Os locais de encontros eram em botequins na rua Direita, nas proximidades do Itapeva, levando a imprensa a protestar pelas algazarras de “pretos e pretas desordeiros…” As festas dos negros não eram compreendidas, apenas suportadas, quando muito. De maneira geral – com suas umbigadas, requebros e descompromissos com a moralidade branca – a música e a dança negras eram tidas como imorais. Os locais onde eles se reuniam para “festar” eram : Largo do São Benedito, mais próximo à rua dos Pescadores (Moraes Barros), Largo da Santa Cruz, perto da rua Direita (Moraes Barros) e ao longo do Itapeva.

Nas memórias do agrônomo Francisco de Assis Iglésias, (Publicada pelo Instiuto Histórico e Geográfico de Piracicaba) há uma observação altamente significativa para se entender o preconceito em relação aos negros à véspera do Século XX. Iglésias conta que, indo ouvir um disco na grande novidade que era o fonógrafo, na casa de família tradicional, ele ouvia gritos, vindos da cozinha: “bacalhau na negra, bacalhau na negra.” Eram ordens para se bater com chicote nas costas da cozinheira. Mas o próprio Iglésias, referindo-se às festas dos negros, escreveu, como que concordando com a repressão branca:

“Em Piracicaba, as autoridades municipais tomaram medidas que deram bom resultado: toda pessoa de cor que perambulasse pelas ruas da cidade sem ter o que fazer, era detida e recolhida na Cadeia Velha, amarela, como era conhecida pelo Zé Povinho, e só podia sair com emprego arrumado.” (A Cadeia Velha estava localizada onde se encontra o EEPP Moraes Barros, na Praça Tibiriçá).

Até mesmo em testemunhos que buscam provar a ausência de preconceitos, eles ficam enfatizados. Ainda do mesmo Iglésias: “…nos últimos dias do século passado (NE: ele se refere a 1900) por ocasião da Semana Santa, foi convidado, pelos organizadores dos festejos religiosos, o maestro Manuel dos Passos, preto, para reger a requinta da Igreja Matriz. Integrou o grupo dos cantores a exma. Sra. dona Maria Amélia Silveira Mello, filha do dr. Prudente de Moraes e esposa do dr. João Batista Silveira Mello. Dona Lalau, como era chamada carinhosamente pelos seus familiares e pessoas que tinham a honra de pertencer ao rol de seus amigos, possuía excelente voz de soprano dramático. A filha do notável brasileiro, ex-presidente da República, não se sentiu diminuída ao obedecer a batuta do maestro negro!”

Na realidade, era o Brasil todo – a partir das mudanças urbanas no Rio de Janeiro – reagindo contra a presença dos negros libertos nos centros das cidades, nos velhos casarões que se iam transformando em cortiços, as cabeças-de-porco que antecederam as favelas. Piracicaba – com suas elites “habituées” da antiga Corte e da agora Capital da República — seguia tendências, moda e modos do Rio de Janeiro e da França. Mas estava sendo minada pelo advento de “novas classes”, formadas pelos imigrantes: italianos, japoneses, árabes, chamados, estes, de turcos. (Ilustração:Araken Martins)

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