O movimento operário no interior paulista (2)

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Manifestação em São Paulo, durante a Greve Geral de 1917. (foto: reprodução Wikipedia)

Piracicaba e a classe obreira durante a Primeira República

Ao nos debruçarmos sobre os trabalhos acadêmicos centrados na história do estado de São Paulo durante a Primeira República, é comum o destaque dado pelos historiadores à produção cafeeira e todas as implicações sociais, políticas e econômicas geradas por essa cultura no Brasil. O café impulsionou vigorosamente o desenvolvimento financeiro de todo o estado de São Paulo, fomentando a construção das ferrovias paulistas para o escoamento da produção e financiando a imigração estrangeira que serviu como mão de obra nos cafezais, transformando São Paulo em um importante centro político do país. Todavia, os municípios paulistas não vivenciaram o grande ciclo cafeeiro de maneira idêntica. Na cidade de Piracicaba, por exemplo, o café dividiu sempre o espaço com a plantação canavieira. A história de Piracicaba é marcada por uma atividade econômica presente na história do Brasil desde o período colonial: a produção do açúcar.

Piracicaba foi fundada no ano de 1767, margeada pelo rio que inspirou a famosa canção Rio de Lágrimas, da década de 1970. Para os memorialistas da cidade, a terra roxa às margens do rio Piracicaba, dentre vários outros aspectos naturais, propiciou que a cidade compusesse no século XVIII o que se convencionou chamar de “Quadrilátero do Açúcar”, região formada por importantes núcleos produtores de açúcar como Sorocaba, Mogi-Guaçu e Jundiaí. Diferentes pesquisadores do município citam o fato de, em 1816, constar na solicitação oficial de elevação da freguesia de Piracicaba à condição de vila (o que só  ocorreu em 1822), o argumento de que em Piracicaba já haveria 14 engenhos de açúcar e 4 de água ardente, e que, em 1836, a cidade já possuía 78 engenhos. A plantação canavieira e os engenhos de açúcar marcam profundamente o cenário do município da sua fundação até os nossos dias.10

Diferentemente do que ocorreu em outras cidades do interior paulista, como Campinas, onde a plantação cafeeira foi avançando progressivamente, em Piracicaba, durante o século XIX e primeiras décadas do século XX, ela se estabilizou, e a cana-de-açúcar, artigo que sempre foi importante na cidade, foi novamente tomando espaço nas fazendas.11 Na cidade de Piracicaba, foi comum, durante todo o ciclo cafeeiro paulista, as duas culturas – cana e café – coexistirem em uma mesma propriedade, inclusive nas terras dos engenhos. A retomada da expansão canavieira tornou-se possível sobretudo através do processo de modernização do setor açucareiro com a instalação de dois engenhos centrais, o Engenho Central de Piracicaba, fundado em 1881, e o Engenho Central de Monte Alegre, fundado em 1887.12

O Engenho Central de Piracicaba é hoje um importante ponto turístico e espaço cultural da cidade; um patrimônio tombado pelo Condepac (1989) e pelo Condephaat (2014), tamanha foi a marca desse estabelecimento na história da cidade. Existem ainda vestígios materiais da Usina Monte Alegre e todo o bairro no qual a usina está localizada é um importante patrimônio histórico do município.13 Ao longo do século XIX e primeiras duas décadas do século XX, foram espaços de conflitos entre os trabalhadores e seus patrões.

A pesquisadora Eliana Tadeu Terci, em sua tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo em 1997, dedicou parte de um capítulo às greves operárias em Piracicaba durante os anos 1889 até 1930; esse é um dos poucos trabalhos acadêmicos que abordam as greves gerais de 1917 e 1919 no município.14 O estudo da autora destaca alguns conflitos entre os colonos e o gerente do Engenho Central, antes da deflagração da primeira greve geral em 1917.15 No interior do engenho, os colonos eram responsáveis por plantar e posteriormente vender a cana-de-açúcar ao estabelecimento, não eram detentores da propriedade em que produziam e assinavam contratos de prioridade com a Société de Sucreries Brésiliennes, proprietária do engenho desde 1899. No momento da venda, foram verificadas várias tensões entre os colonos e o gerente do engenho, geralmente porque exigia-se dos colonos valor muito abaixo do mercado.16 Alguns desses embates resultaram em greves no interior do estabelecimento que foram noticiadas nos jornais do período. Em 1902, a Gazeta de Piracicaba publicava:

ainda uma vez, anteontem, estiveram em greve os colonos do Engenho Central da Companhia Sucrèrie de Piracicaba. Motivou-a o quererem aqueles que se elevasse o preço dos carros de cana, de 12 para 15$000, e a isso não ceder o gerente daquele estabelecimento. Ao que nos disse este, não o podia fazer, nem a isso tinham direito os colonos em face do contrato escrito existente entre a Companhia e os mesmos. Com quem estava a razão, enfim não o sabemos. É uma questão de direito que só como tal poderá ser resolvida.17

Embora, como lembra Terci, os conflitos rurais não fossem uma exclusividade de Piracicaba, matérias como essa apresentada pela autora nos conduzem ao cenário obreiro da cidade durante a Primeira República. No interior dos principais estabelecimentos fabris do município, no caso, os engenhos centrais, que a essa época eram verdadeiras usinas de açúcar, trabalhavam operários no setor de maquinamento, como mecânicos, caldeireiros e fundidores, ao lado dos colonos da cana, responsáveis pela lavoura. Foram esses os trabalhadores que participaram das primeiras greves gerais no município e deram início às mobilizações da classe trabalhadora na cidade. A existência de tensões no Engenho Central de Piracicaba também sugere que o advento das greves de 1917 e 1919 não foram movimentos espontâneos, frutos unicamente de uma conjuntura específica desses anos. As greves gerais na cidade não ocorreram apenas como um sinal de solidariedade aos operários da capital, como defendeu o Jornal de Piracicaba durante o movimento, mas foram resultados de uma história de insatisfação e de uma série de conflitos que já vinham ocorrendo no interior de cada um dos estabelecimentos da cidade.

Além do café e da cana-de-açúcar, a cidade também produziu o algodão que experimentou um breve ciclo de prosperidade durante as décadas de 1860 e 1870. Nessa mesma época, precisamente em 1873, foi instalada uma importante fábrica de tecidos no município. O empreendimento que inicialmente se chamava Santa Francisca (1873), depois Arethusina (1902) e finalmente Fábrica Boyes, foi fundado por Luiz Vicente de Sousa Queiroz, o mesmo idealizador da Escola Agrícola de Piracicaba (1901), que hoje, denominada Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz/ESALQ, é um campus pertencente à Universidade de São Paulo/USP.18

A fábrica foi posta em funcionamento no ano 1876 e começou a operar com 70 trabalhadores que produziam cerca de 600 a 700 mil metros de algodão por ano. Essa unidade produtiva funcionou durante grande parte do século XX e passou por vários proprietários até decretar falência.19 Hoje, seus vestígios materiais são tombados pelo município. Embora não haja atualmente ações efetivas que garantam sua preservação, além das várias pressões imobiliárias, a fábrica Arethusina durante a Primeira República se destacou como um dos maiores estabelecimentos industriais no cenário nacional. Para Eduardo Ferraz:

Pela sua magnitude, a Arethusina fugia dos padrões industriais da Primeira República, cuja marca eram as pequenas empresas, de mínima capitalização e base técnica artesanal. Para o ano de 1919, as indústrias de 200 a 499 empregados, dentre as quais a fábrica piracicabana se inclui, representavam apenas 1,1% do total em São Paulo e 1,8% no Rio de Janeiro.20

Ao lado da Arethusina também compunha o cenário industrial de Piracicaba outro grande estabelecimento: a Casa Krähenbühl. Fundada em 1870 por Pedro Krähenbühl, possuía 40 operários e produzia trolleys e tílburis. Entre o final do século XIX e início do XX, a família Krähenbühl, de origem suíça, instalou uma carpintaria, uma serraria e uma oficina mecânica que, além da fundição do bronze, fabricava fogões e arados. O Almanaque de Piracicaba do ano de 1955 aponta a Casa Krähenbühl como pioneira do setor no estado de São Paulo.21 A fábrica completou 100 anos em maio de 1970, ocasião em que foi publicada uma reportagem sobre sua trajetória no jornal O Estado de São Paulo. No entanto, do início do século XX restaram poucos vestígios, havendo apenas algumas fontes iconográficas e algumas referências em periódicos locais e estaduais.22

O Engenho Central de Piracicaba, o Engenho Monte Alegre, a fábrica de tecidos Arethusina e a Casa Krähenbühl eram os maiores e mais importantes estabelecimentos fabris do município durante as greves gerais de 1917 e 1919. Foram os trabalhadores desses locais que concitaram o movimento grevista na cidade e, ao mesmo tempo, foram esses os estabelecimentos que ganharam destaque no Jornal de Piracicaba durante o desenrolar do movimento paredista. Todavia, ao lado desses grandes empreendimentos fabris, funcionava uma série de outros pequenos comércios, fabriquetas e oficinas, cujos proprietários tiveram que negociar com a classe trabalhadora a fim de conseguirem o encerramento do movimento grevista e voltarem à normalidade. Entre elas podemos citar: Braga & Cia, Casa di Lascio, Polacow e Irmão, Casa Nova York, Paschoal Gerriri & Irmãos, Pedro Botenne & Filhos e Serraria Aliança.23

Até os anos 1930, Piracicaba não sofreu muitas alterações no cenário rural ou industrial, mantendo-se como uma importante cidade produtora de açúcar, marcada pela plantação canavieira, pela produção em menor escala de alguns outros cereais como milho, e cítricos como a laranja, e por alguns grandes e outros pequenos estabelecimentos fabris. Ao longo dos primeiros 30 anos do século XX, o café foi decrescendo no município até atingir a crise de 1929 e perder definitivamente importância.24 A produção do açúcar, ao contrário, foi se expandindo, principalmente após a criação do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) em 1933, que através de uma série de medidas beneficiou Piracicaba e contribuiu para que a cidade fosse a maior produtora dessa mercadoria em todo o estado de São Paulo até 1960, quando perdeu seu posto para Sertãozinho, município localizado na região metropolitana de Ribeirão Preto.25

A partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a cidade experimentou um vertiginoso crescimento do setor metalúrgico com a expansão da fábrica Dedini, fundada em 1920. Seu fundador, Mário Dedini, um imigrante italiano, comprou o setor mecânico da Krähenbühl na década de 1940, e a empresa, ativa até hoje, se tornou a maior metalúrgica do município e uma grande companhia nacional no pós-guerra.26 Na cidade de Piracicaba aconteceu uma conjugação do setor metalomecânico com a produção sucroalcooleira, uma vez que o Grupo Dedini produzia equipamento de usinagem, chegando mesmo a construir usinas completas para a fabricação do álcool e do açúcar.27 A partir da década de 1950, os metalúrgicos passam a se destacar na liderança do movimento operário piracicabano, ao lado dos trabalhadores no setor da alimentação, que inclui os operários das grandes usinas presentes até hoje na região. Ainda hoje, os trabalhadores nas indústrias mecânicas, metalúrgicas e de material elétrico formam uma das maiores e mais organizadas categorias da cidade, que conta com outras fábricas como a Caterpillar, instalada na década de 1970, e a Hyundai, inaugurada já no século XXI.28

referências

10. NEME, Mário. História da fundação de Piracicaba. Piracicaba: Editora João Mendes da Fonseca, 1943. PETRONE, Thereza Sherer. A lavoura canavieira em São Paulo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968. CANABRAVA, Alice e TEIXEIRA, Mendes M. A região de Piracicaba. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, v. 4, n. 45, p. 275-338,1938.

11. RAMOS, Pedro. História Econômica de Piracicaba (1765-1930): as particularidades do complexo canavieiro paulista. In: TERCI, Eliana Tadeu (org). O desenvolvimento de Piracicaba. História e perspectivas. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2001.

12. BILAC, Maria Beatriz Bianchini, TERCI, Eliana Tadeu, PADILHA, Danieli Alves, MAESTRELLO, Ana Paula Vedovato. Piracicaba, a aventura desenvolvimentista (1950-1970). Piracicaba: UNIMEP, 2001.

13. PERES, Maria Thereza Miguel Peres. O colono de cana na modernização da Usina Monte Alegre: Piracicaba (1930-1950). Dissertação (Mestrado) – Programa de Estudos Pós-Graduados, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1990.

14. TERCI, Eliana Tadeu. A cidade na Primeira República: imprensa, política e poder em Piracicaba. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.

15. Sobre Piracicaba na Primeira República, consultar:  PACANO. F. A. O forjar da modernidade: Piracicaba e a belle époque caipira (1989-1930). Tese (Doutorado) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, Rio Claro, 2018.

16. TERCI, 1997, op. cit.

17. Gazeta de Piracicaba, Piracicaba, 24 jul. 1902 apud: TERCI, Eliana Tadeu. A cidade na Primeira República: imprensa, política e poder em Piracicaba. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.

18. GUERRINI, L. História de Piracicaba em quadrinhos. Piracicaba: Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, 1970.

19. PERECIN, Marly Therezinha Germano. A síntese urbana (1822-1930). Piracicaba: Equilíbrio; Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, 1989.

20. FERRAZ, Eduardo L. L. Acidentados e remediados: a lei de acidentes no trabalho na Piracicaba da Primeira República (1919-1930). Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 2, n. 3, p. 206-235, 2010.

21. KRÄHENBÜHL, Hélio. Almanaque de Piracicaba – 1955. Piracicaba: João Mendes Fonseca, 1955.

22. O Estado de São Paulo, 3 maio 1970. Arquivo Público do Estado de São Paulo.

23. Jornal de Piracicaba, 19 jul. 1917. Biblioteca Municipal de Piracicaba, Piracicaba, SP.

24. BILAC, Maria Beatriz Bianchini, TERCI, Eliana Tadeu. Piracicaba: de centro policultor a centro canavieiro, 1930-1950. Núcleo de Pesquisa e Documentação Regional, FAP/PIBIC-CNPq. Piracicaba: MB Editora, 2001.

25. SAMPAIO, Silvia Selingardi. Geografia industrial de Piracicaba: um exemplo de interação indústria-agricultura. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio Claro, 1973.

26. NEGRI, Barjas. Estudo de caso da indústria nacional de equipamentos – análise do Grupo Dedini (1920-1970). Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba – IHGP. Piracicaba: Editora Equilíbrio, 2010.

27. SAMPAIO, op. cit.

28. JUNQUEIRA, Fabiana R. de A. Trabalhadores do aço na terra da cana: os metalúrgicos e a formação da classe operária em Piracicaba (1945-1968). In: 30º Simpósio Nacional de História – ANPUH, Recife/PE. Anais […]. Recife: UFPE, 15 a 19 de julho de 2019. Disponível em: https://www.snh2019.anpuh.org/site/anais#F. 29 BIONDI; TOLEDO, op. cit.

(continua)

Para conhecer o artigo completo, acompanhe a TAG Greves Piracicaba.

*Fabiana Ribeiro de Andrade Junqueira é doutoranda em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Graduada e Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3431-6188. E-mail: [email protected].

[Este artigo foi publicado em revista da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina: Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 12, p. 1-21, 2020 | e-ISSN: 1984-9222 | DOI: https://doi.org/10.5007/1984-9222.2020.e74220 ]

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