O sonho de Manoel Gomes Tróia (12)

Oposição sem trégua

Em fevereiro de 1986, Manoel Gomes Tróia faria uma declaração reveladora das relações desgastadas que passara a ter com parte da comunidade médica:

– “O médico está chegando à cooperativa mais para encontrar um lugarde trabalho do que pela filosofia”. E acrescentava que, por essa sua conclusão, não iria “dar tréguas ao trabalho de conscientização, desta vez não mais junto à população, mas sim com os próprios cooperados.”1

No entanto, era apenas o clímax de um processo de insatisfações que, desde 1985, um grupo de médicos disseminava, criando adeptos, especialmente entre mais jovens. Uma das queixas era a remuneração.

– “O médico recebia menos do que um barbeiro…”, ainda diz o médico Bernardo Aguiar Jordão, um dos oposicionistas mais ferrenhos.2 Sem quantificar os vencimentos “de um barbeiro”, Jordão, no entanto, reflete parte de um estado um estado de espírito à época.

O médico Jacob Bergamin Filho, também ativo oposicionista à diretoria presidida por Manoel Gomes Tróia, tem o mesmo ponto de vista:

– “Ninguém jamais discutiu a honestidade do dr. Tróia, da diretoria que ele presidia. Mas, para nós, ele não estava cumprindo o objetivo da Cooperativa. Os médicos sentiam-se prejudicados. Antes, os pacientes ou eram particulares ou indigentes. A UNIMED ficou no intermediário, mas corroeu a clientela particular sem substituir uma estrutura por outra adequada. Os sindicatos sentiam- se donos da UNIMED e ninguém sabia quem era realmente associado do sindicato para ser atendido pelos planos da cooperativa.”

O próprio Tróia, em entrevistas à imprensa ou em comunicados aos cooperados, tentava justificar a situação. Pela imprensa, quando indagado do porquê de os médicos cooperados receberem 1/3 do que receberiam de consultas particulares, explicou:

– “É preciso estarmos cientes de nossa realidade. Apenas 17% da população podem pagar uma consulta ao preço real. O restante, ou apelaria para o INPS ou à medicina mercantilistas. Fazendo parte da UNIMED, recebendo 1/3 do que receberia por uma consulta particular, o médico estará trabalhando pela comunidade e defendendo seu mercado de trabalho.”3A essa tese, dar-se-ia, depois, o nome de “desvio de objetivo”, motivo pelo qual se tentou, na Justiça, a destituição da diretoria da UNIMED-Piracicaba, presidida por Manoel Gomes Tróia.

A implantação da “tabela da AMB” (Associação Médica Brasileira) era tema que vinha dominando os últimos congressos e encontros das UNIMEDs, como os realizados em Goiânia (GO), Vitória (ES) e Friburgo (RJ). Na “Circular nº 03″4, Tróia tenta mostrar, aos cooperados, suas dúvidas quanto à adoção da tabela, justificando-se com exemplos de prejuízos ocorridos nas UNIMEDs de Campinas e de Petrópolis, que a haviam adotado. E, no mesmo documento, dá estocadas na oposição: “…A renovação de que tanto se fala, na oposição, deve ser bem compreendida. O que deve haver não é a simples troca de nomes nos cargos (com encargos) da Cooperativa. O que deve haver é inovação de idéias e de programas. (…) Trocar competência por incompetência não é renovação. (…) E o que dizer de uma oposição que, antes mesmo de serem diretores, já conseguiram uma ‘briga’ com os sindicatos? Já criaram uma inimizade gratuita entre UNIMED e Sindicato. Que habilidade!!!”

 

 

 

Alcione Moya Aprilante, por sua vez, ainda insiste em afirmar que, naquele confronto, o apoio dos sindicatos a Tróia criava dificuldades para os médicos da oposição, especialmente porque não era interesse sindical que se alterassem os termos dos contratos existentes.5Na verdade, quando o Brasil saía da ditadura e se democratizava, fortes inflexões político-ideológicas permeavam as atividades nacionais. A aliança original de Tróia com os sindicatos mantinha insatisfações.

 

 

 

O médico Bernardo Aguiar Jordão, refletindo sobre aquele momento, insiste na indisposição de alguns em relação aos sindicatos:

– “Eles eram a grande força de Tróia na UNIMED. Era uma espécie de fascismo. A impressão que se tinha é a de que os sindicatos usavam a UNIMED para angariar sócios.” Era, segundo ele, a mesma impressão que dominava os colegas Eudes de Freitas Aquino, Moracy Arruda, Jacob Bergamin, Ludmar Navajas Machado, que ele chama carinhosamente de “agitadores”.

Insatisfação e propostas

No dia 23 de abril de 1985, um grupo de 21 médicos cooperados reúne-se para discutir “problemas e alternativas pertinentes à nossa cooperativa, tendo como ensejo maior o clima crescente de insatisfação vigente”.6 Apontavam problemas e faziam propostas. Algumas das insatisfações: queda real da remuneração de consultas e tratamento hospitalar pagos pela cooperativa; critérios de atendimento de usuários de elevado poder aquisitivo e assalariados e de menor renda; perda progressiva de clientes particulares, “como conseqüência direta da sua absorção por convênios mal estruturados (Sindicatos)”; glosa de consultas e contas hospitalares; retardo no pagamento de serviços hospitalares prestados. E propõem o uso da tabela da AMB como base para cobrança de honorários e escalonamentos dos convênios existentes em duas ou mais categorias distintas.

Na “Circular 03/85″7, Tróia, sem ainda responder às proposições dos médicos, informa a decisão do Conselho Administrativo da UNIMED de reajustar os valores pagos aos médicos: “consulta normal, Cr$30,00 (trinta reais); consulta noturna, Cr$40,00”, sendo este também o valor para consultas de planos especiais. É lacônico. A quem não acompanha os acontecimentos, é como se nada de conflituoso estivesse ocorrendo na Cooperativa.

Em 17 junho de 1985, quase dois meses depois de receber o ofício dos médicos, Tróia responde. Mas é provocador, utilizando-se dos reajustes feitos a partir daquele mês e criticando médicos: “Existem médicos na Cooperativa, cobrando menos do particular, daquilo que paga a UNIMED, não só em consultas, mas também nos serviços médicos.” E, admitindo que havia “queda de remuneração das consultas e serviços médicos pela UNIMED”, lembrava que a insatisfação era nacional e que “somente nos primeiros meses do ano de 1.985, a classe média perdeu 30% de seu poder aquisitivo”. 8

Eram os tempos do Presidente Sarney, após o trágico desaparecimento do presidente eleito Tancredo Neves, quando a inflação se tornou galopante. O Brasil mergulhara em grave crise política e econômica. O poder voltava a mão dos civis, com a posse, em 15 de março de 1985, não de Tancredo Neves, já gravemente doente, mas de seu vice, José Sarney. Em seu primeiro discurso depois da posse, o político – que apoiara o movimento militar de 1964, chegando à presidência envolvido pela falta de legitimidade – manifestara seu entendimento claro sobre a situação do país: “Herdei para administrar a maior crise política da história brasileira, a maior dívida externa do mundo, a maior dívida interna e a maior inflação que já tivemos, além da maior dívida social, a dívida moral”.

A crise também atingira a classe médica. Refutando ponto por ponto das insatisfações e das propostas dos cooperados, Manoel Gomes Tróia, em nome da diretoria, conclui o documento atiçando ainda mais as divergências. Escreve, sem qualquer sutileza: “Nestas condições, a diretoria da Cooperativa faz a sugestão para que este grupo de médicos crie uma comissão de cooperados para atuar junto as empresas, entidades e sindicatos, procurando melhores condições no mercado de trabalho médico.”9 Era uma inequívoca declaração de rompimento com o grupo de médicos. E foi o que e como eles entenderam.

O começo do fim

A eleição de 3 de março de 1986 marcou o começo do fim do chamado “período Tróia” na UNIMED-Piracicaba, o da criação, instalação, maturação da cooperativa de médicos. A oposição à diretoria tornou-se clara e crescente, mobilizando-se de maneira que parecia irresistível. Era tal o clima de confronto que a decisão da assembléia poderia terminar na Justiça, Manoel Gomes Tróia previra-o. E tanto assim foi que solicitou a presença do advogado da Federação das UNIMEDs de São Paulo, Reginaldo Ferreira Lima, para acompanhar os trabalhos. Prevendo grande número de médicos aptos a votar, a assembléia foi marcada para ocorrer no salão do Clube Coronel Barbosa, à esquina da rua São José com a Praça José Bonifácio. Compareceram 143 dos 286 médicos cooperados.

Francisco de Toledo aponta a causa dos conflitos que aconteceram: os editais de convocação para a assembléia geral. Tinham sido dois: o primeiro, para mudança de estatutos; o segundo, para a eleição. Eles haviam sido feitos no início do mês de fevereiro, publicados no “Jornal de Piracicaba” entre convites de missa, notas de falecimento. Eram dois editais: um, alterando os estatutos; outro, marcando a eleição. A oposição deveria registrar a chapa com prazo de dez dias antes da data da eleição. Não houve o registro, especialmente porque a grande maioria dos associados não tomara conhecimento dos editais pelo jornal.

– “A confusão foi total. A chapa da oposição não foi aceita e a maioria tentou bloquear a eleição. A de Tróia foi eleita com 100 votos de abstenção e apenas 33 a favor”, lembra Toledo.10

Uma última tentativa de negociação foi feita antes daquela eleição que se tornou histórica. O candidato da oposição, médico Walter Calil Chaim, reuniu- se com Manoel Gomes Tróia numa das salas do Clube Coronel Barbosa. As propostas eram irreconciliáveis: Chaim, em nome da oposição, propunha que Tróia desistisse de candidatar-se; Tróia não abria mão, cedendo, no entanto, três cargos da diretoria a membros da oposição. Os ânimos se exaltavam, as provocações aconteciam de ambas as partes. Sem acordo, sem chapa inscrita, a oposição viu Manoel Gomes Tróia eleger-se pela última vez presidente da UNIMED-Piracicaba.

Por muito tempo, falou-se que, naquela assembléia, Manoel Gomes Tróia evou embora o livro de atas. Francisco Toledo confirma:

– “Sim, ele levou o livro, logo após a eleição. Era o presidente legal e o livro estava sob a sua guarda.”11

Tróia lembra-se com detalhes:

– “Eu e minha diretoria estávamos novamente eleitos. Alguns médicos mais jovens me vaiavam, chamando-me de ditador, de arbitrário. Botei o livro de atas debaixo do braço e saí. Deixei o livro de atas na secretaria e está lá até hoje.”12

 

Notas

1-Manoel Gomes Tróia em entrevista a Assistência Médica, fev/1986. nº 2

2- Entrevista de Bernardo Aguiar Jordão ao autor, 27/05/2003.

3 Entrevista de Jacob Bergamin Filho ao autor, 26/06/2003.

4- Entrevista de Manoel Gomes Tróia ao Jornal de Piracicaba (Caderno especial),18/10/1984.

5- A cópia da circular, em posse do autor, não está datada. Presume-se, no entanto, seja de fins de 1984 ou início de 1985, no máximo, em virtude de referência que se faz à assembléia de “fevereiro p.f.”, visando “…instalar a tabela AMB aos longos dos anos 85 e 86”.

6-Entrevista de Alcione Moya Aprilante ao autor, 24/06/2003.

7-Os signatários das propostas à diretoria da UNIMED eram os seguintes médicos cooperados: Ludmila M. W. Aloisi, Gustavo Peccinini Junior, Felício de Moraes, Eduardo Roque Verani, Bernardo Dias Aguiar Junior, Eudes de Freitas Aquino, Geraldo Ferreira Borges Jr, Enrique Crispin I. Costa, Álvaro Manoel Antunes, Ariovaldo Antonio Vendramin, Bernardo Aguiar Jordão, Antonio Sérgio Aloisi, Jacob Bergamin Filho, Irineu Pacheco Bacchi, Carlos Alberto Martins, José Fernando Fanchin, Renato Françoso Filho, Ludmar Navajas Machado, Waldir Collucci Machado, Carlos Alberto Cury e Américo Ferraz Oliveira Jr.8- Documento, em poder do autor, sem data, a não ser a que identifica o ano de 1985.

9-Documento em poder do autor.

10 Idem.

11- Entrevista de Francisco Toledo ao autor, 29/08/2002.

12- Entrevista de Manoel Gomes Tróia ao autor, 30/07/2002.

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