JIC Mendes, ilustrador (2)
O texto, a seguir, é conteúdo do livro “JIC Mendes, ilustrador – São Paulo e o mundo há 70 anos nos traços de um grande cartunista”, que integra a Coleção de Humor Gráfico da AHA – Associação dos Amigos do Salão Internacional de Humor de Piracicaba, em parceria com o IHGP – Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba. O livro reúne os trabalhos publicados no jornal “A Noite”, de São Paulo, no final dos anos 40. Conforme nota do editor, as legendas das ilustrações foram transcritas, mantendo-se a grafia original das mesmas.
2 – Autocaricatura
Quarta-feira, 10 de setembro de 1947
NO DIA seguinte, “A Noite” não deixou de comentar a transformação do novo cartunista: o semblante sisudo dava lugar a outro, sorridente.
JIC Mendes juntava seus desenhos aos de profissionais mais experientes, como o quase-xará Mendez, do Rio de Janeiro, retratistas de estilo mais realista como Alcides Torres, Pacheco e Paulo Ribeiro, e caricaturistas como Moura, Vic e Alvarus. Todos eles forneciam retratos e caricaturas das personalidades nacionais e internacionais que eram objeto das notícias. Porém, as peças desses artistas eram reutilizadas quando a figura pública voltava a ser objeto de comentário. Dessa forma, alguns desenhos passavam anos sendo reaproveitados (exemplos disso são a caricatura recorrente do papudo político petebista Helio Borghi e a pequena coletânea de caricaturas de Gandhi publicada quando este foi assassinado em 30 de janeiro de 1948).
JIC chegou para revolucionar essa prática. Suas obras, sempre inéditas e feitas sob medida, teciam comentários sobre os eventos e personagens do momento com agilidade para captar o espírito da notícia e com abundância de referências pictóricas aos fatos da época – uma reviravolta no âmbito do vespertino. É uma riqueza fabulosa de detalhes e alusões que só ele, depois de mais de 70 anos, consegue restituir plenamente, graças a uma memória impressionante.
Aqui o risonho desenhista aparece vestido com a mesma elegância da foto da véspera, segurando seu instrumento de trabalho, um lápis de tamanho exagerado. Seria uma premonição de sua futura ligação com Itu, cidade que ainda não era famosa como a terra onde tudo é grande, e que lhe concederia seis décadas mais tarde, o título de cidadão ituano?
Depois do lápis, ele trabalhava a nanquim, repassando os traços do desenho feito no papel vegetal, acrescentando sombras, padrões e texturas (vale reparar na sutileza e variedade dos tecidos desenhados), compondo letras e legendas. Depois de algum tempo, passou a usar também, para fazer as sombras, uma tinta azul que produzia um colorido cinza homogêneo após a impressão. E, além do lápis e do nanquim, trabalhava com muita imaginação e capricho nos detalhes: debaixo do braço lê-se na folha dobrada o nome do jornal que o contratara. É sempre assim: em praticamente todas as suas ilustrações existe o pormenor, às vezes microscópico, que adiciona uma informação de contexto ou uma nota de humor reservadas aos leitores mais atentos – ou possuidores de uma boa lupa.
3 – Nhô Dutra e Dona Democracia
Quinta-feira, 11 de setembro de 1947
O MARECHAL Eurico Gaspar Dutra assumiu a presidência do Brasil em 31 de janeiro de 1946, com o compromisso de democratizar o país depois de 15 anos sob a ditadura de Getúlio Vargas. Estranho compromisso, já que Dutra havia sido o braço-direito de Vargas durante todo esse período e foi eleito em coligação com o PTB, partido de Getúlio. Pelo menos, as instituições democráticas foram formalmente restabelecidas: os partidos políticos foram readmitidos, o voto direto reinstaurado, a Assembleia Constituinte eleita e logo se seguiria uma nova Constituição.
Porém, segundo a ideologia então predominante, a principal ameaça à democracia era o comunismo. Em abril de 1947, Dutra declarou a ilegalidade do Partido Comunista Brasileiro com o argumento de que ele obedecia ordens da União Soviética (o que não deixava de ser verdade).
Nesta primeira charge publicada do JIC, o presidente Dutra, retratado como caipira de chapéu de palha e cigarro atrás da orelha, promete que a elegante democracia não será incomodada pelo cachorro brabo, que tem a foice e o martelo ao lado do seu prato de comida.
4 – Os “ventiladores” da Telefônica
Terça-feira, 16 de setembro de 1947
NA RUA Sete de Abril, onde ficava a redação de “A Noite”, a companhia telefônica havia instalado dutos de ventilação sob as calçadas. O implemento urbano provocou – ou sugeriu à imaginação do JIC – esta cena picante, típica do olhar irônico e malicioso do ilustrador. Vale reparar o artifício técnico: no segundo quadro, o galanteador aparece menor, para sugerir a perspectiva e o deslocamento da moça. E o detalhe cômico: mesmo com a distância, ainda se vê as notas musicais emitidas pelo assobio.
E para quem se lembrou da Marilyn Monroe, que segurava o vestido branco esvoaçante sobre uma grade de ventilação do metrô, sob o olhar ávido de Tom Ewell, vale lembrar que essa cena antológica do filme “The Seven Year Itch” (“O pecado mora ao lado”) só aconteceria oito anos mais tarde, em 1955.
(continua)
Para acompanhar outros capítulos deste livro, acesse a TAG JIC Mendes.