A Denúncia da Santa Ceia

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Alecrim, hortelã, manjericão, salsa. Alfaces, couves, alhos-porós e cenouras — uma horta caseira, colorida e aromática, dominava o quintal do sítio no bairro do Monte Alegre. As crianças, da casa e da vizinhança, conheciam cada pedacinho do lugar. Corriam e brincavam no meio das beringelas e das pimenteiras e, com o sol quente, refrescavam-se à sombra das mangueiras.

Os canteiros, bem demarcados, com a terra afofada e preparada, não guardavam apenas as sementes, mas os segredos dos pequenos. Sinalizavam o local com um graveto, para facilmente encontrarem, enterrado e envolto por um saco plástico, o maço de cigarros.

Solange e as amigas, de 12 anos, com o dinheiro que ganhavam para os doces, compravam cigarros na venda.

Hoje, a ANVISA regula, rigidamente, a exposição de produtos derivados do tabaco, nos pontos de venda. Os mostruários devem ficar apenas na parte interna dos estabelecimentos, acompanhados das advertências sanitárias e da mensagem de proibição de venda a menores de 18 anos.

Começara a fumar roubando os cigarros do pai. Tinha medo de que ele descobrisse. Respeitava essa hierarquia, apesar de não entender sua lógica. Certa vez, já mais velha, quase a descobriu o pai. Ouvindo-o entrar à casa, escondeu o maço de cigarros atrás do quadro da Santa Ceia. Na pressa, deixou-o torto, chamando a atenção do pai que, meticuloso, pô-lo no lugar, não sem antes derrubar o objeto mal escondido. Solange desconversou e sugeriu que os cigarros poderiam ser de algum de seus quatro irmãos.

A história dessa família escreveu-se marcada pelo tabagismo. Nos idos dos anos 1920, amarrava cana nas lavouras, a avó materna que, muito cedo, deixara 12 filhos: morreu de infarto, subitamente, aos 50 anos. O pai partiu aos 65, sofrendo de doenças respiratórias. Sorte também não teve o irmão, envolvido com álcool, tabaco e drogas, quando, após muito sofrimento, morreu aos 48.

No início dos anos 2000, Solange parou de fumar quando ela e o marido Jair, diácono, iniciaram as atividades da “Revida”, clínica de recuperação de usuários de drogas, ligada à Igreja Católica. Atenderam, gratuitamente, durante oito anos, homens carentes, até que um câncer de pâncreas, fulminante, levou, aos 53 anos, seu companheiro, mesmo muitos anos longe do álcool e do cigarro.

De fato, o corpo de um ex-tabagista sente os benefícios quase imediatos, como a redução na pressão sanguínea após alguns minutos, a diminuição no cansaço e o aumento na aptidão física após alguns dias. Porém, fazem-se necessários 15 anos para que se igualem, aos de quem nunca fumou, os riscos de doenças cardiovasculares e de câncer.

Solange, hoje com 61 anos, em abstinência do tabagismo há 180 dias, desde que fez o tratamento comigo, recupera-se de complicações na cicatrização de uma abdominoplastia.

A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica recomenda a cessação do tabagismo por, no mínimo 4 semanas antes da cirurgia, com o objetivo de reduzir, mas não zerar, algumas complicações na cicatrização das feridas operatórias. Entre elas, a deiscência de sutura, popularmente conhecida como a abertura dos pontos. A abstinência promoveria a restauração dos níveis de oxigênio nos tecidos, diminuiria o estresse oxidativo e restauraria o estoque de colágeno, principal proteína da pele.

Num sábado de manhã, após retornar da 21ª sessão de câmara hiperbárica, Solange falou comigo ao telefone. Questionei-a se me permitia contar todos os detalhes dessa história. Ela, orgulhosa, me respondeu:

— Doutora Ju, eu não tenho vergonha do meu passado. Essa história pode inspirar muitas pessoas. Conhece aquela avenida, grande, no bairro Santa Rosa?  “Avenida Diácono Jair de Oliveira”? tem esse nome em homenagem ao meu falecido marido.

— Se for para, um dia, sermos lembrados, seremos. De uma forma ou de outra, agora ou depois.

*Dra. Juliana Barbosa Previtalli – médica cardiologista, integrante do Corpo Clínico da Santa Casa de Piracicaba; diretora científica da SOCESP regional Piracicaba; idealizadora do projeto antitabagismo “Paradas pro Sucesso”.

*Erasmo Spadotto – cartunista e chargista, criou a ilustração especialmente para este artigo.

A Província apoia o projeto e a campanha antitabagismo “Paradas pro Sucesso”. Para acompanhar outras crônicas desta série, acesse a TAG Paradas pro Sucesso.

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