A Sala de Jogos e o Fumar de Castigo
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A mesa redonda de carteado, com revestimento em feltro verde, destacava-se na sala de jogos. A atmosfera mostrava-se, constantemente, esfumaçada pelos cigarros; garrafas, de todos os formatos e tamanhos, jaziam vazias, enfileiradas no chão. Todas as noites, os convidados entravam e saíam, sempre bem-vestidos. Reuniam-se para jogar cartas — ambiente comum em um clube para adultos. Dessa maneira, Flávia, hoje com 46 anos, descreveu a casa de seus avós, em que passou a infância. Cigarro, álcool, jogos de azar — o vício fazia-se rotina em sua vida.
Menina determinada e muito estudiosa, driblou as dificuldades que, à sua frente, se acumulavam. Concursada na área da Educação, assumiu, ao longo de 14 anos, cargos de diretora e de supervisora em escolas. Sua tarefa envolvia a orientação dos professores. Divulgava, entre outras, as normativas quanto à proibição do consumo de cigarros nas escolas e em prédios públicos. Incomodava-a saberem-na fumante. Envergonhava-se se a vissem, na calçada em frente à Secretaria Municipal, a fumar, escondida, atrás das árvores. Cuidava, até, em guardar as bitucas dos cigarros para descartá-las, posteriormente, em local apropriado.
Vivia o contraditório de temer os males do tabagismo e de, no entanto, agarrar-se a ele, como a um companheiro, a fim de os pensamentos fluírem melhor.
Diz a sabedoria popular que o cigarro acalma e dá prazer e que a dependência tem caráter psicológico. Desconhecem que a nicotina provoca alterações fisiológicas, insensíveis à força de vontade do cidadão. Ela age em receptores existentes nos neurônios cerebrais. Ao ligar-se a eles, liberam-se os neurotransmissores dopamina, serotonina e opioides — responsáveis pela sensação de bem-estar e de redução do estresse e da ansiedade. Fumar melhora, de fato, a concentração, a prontidão das reações e a performance de algumas tarefas. Conforme o grau de dependência, passam-se horas, ou apenas poucos minutos, entre o último cigarro e o “ataque de nervos” para acender o seguinte.
Certo dia, leitora assídua de jornal, Flávia deparou-se com uma matéria sobre o tabagismo com citação à minha pessoa. Começava o “lockdown” e, com a rotina forçadamente alterada, decidiu fazer algumas mudanças, que já vinha planejando, em sua vida — resolveu sair da Secretaria, voltou às salas de aula e ganhou algo precioso — tempo. Entrou na academia, começou a fazer terapia e a escrever — até se inscreveu em concursos literários — e decidiu, naquele momento, parar de fumar.
Implementou, com determinação, as orientações que, de mim, recebeu durante o tratamento. Sentindo vontade de fumar, saía a caminhar na área de lazer da Rua do Porto; bebia muita água e “fumava de castigo” — técnica desenvolvida pela cardiologista do INCOR, Jaqueline Scholz, em que se permite, ao paciente, fumar, se tiver vontade, mas em pé, sozinho, sem o celular, alimentos ou bebidas e olhando para a parede. Como a uma criança de castigo, a técnica comportamental, associada aos medicamentos habituais, dobram as chances de o paciente deixar o cigarro.
Flávia finalizou, com êxito, o tratamento e conseguiu parar de fumar.
Passados mais de dois anos em abstinência do tabagismo, permanece em seguimento comigo. Fazemos as consultas e os exames rotineiros — aferir a pressão arterial, auscultar o coração, realizar o eletrocardiograma, dosar o colesterol e a glicemia…
Numa dessas visitas, Flávia queixou-se de ansiedade, de irritação e da vontade de fumar, vez ou outra. Pediu minha ajuda — temos de prevenir uma recaída!
*Dra. Juliana Barbosa Previtalli – médica cardiologista, integrante do Corpo Clínico da Santa Casa de Piracicaba; diretora científica da SOCESP regional Piracicaba; idealizadora do projeto antitabagismo “Paradas pro Sucesso”.
*Erasmo Spadotto – cartunista e chargista, criou a ilustração especialmente para este artigo.
A Província apoia o projeto e a campanha antitabagismo “Paradas pro Sucesso”. Para acompanhar outras crônicas desta série, acesse a TAG Paradas pro Sucesso.