As marcas do Cesário Motta

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Quem hoje passa às margens da Rodovia Geraldo de Barros, no distrito de Santa Terezinha, mal vê, em meio ao mato que cresce no entorno, as instalações, abandonadas, do antigo Hospital Espírita Dr. Cesário Motta Júnior. Construído na década de 1970, dispunha de 500 leitos para o tratamento de pacientes com doenças psiquiátricas. Homens e mulheres, de todas as idades, recebiam acolhida, naquele lugar. Com doenças difíceis de tratar, muitos permaneciam em internações prolongadas ou até permanentes. Quase 50 anos atrás, permitia-se o consumo de cigarros na instituição.

Dentro do vasto quadro de colaboradores, destacava-se a jovem enfermeira Valdeci, por seu cuidado com os internos. Paciente, tinha sempre uma palavra amiga e ouvidos atentos. Assim como muitos de seus doentes, também fumava.

Quantas vezes você já ouviu falar que pacientes psiquiátricos não conseguem parar de fumar?

Apesar de tal crença, essa população, com certeza, pode se beneficiar dos esforços de cessação ao tabagismo, que deveriam ser realizados simultaneamente aos demais tratamentos dos transtornos mentais.

O uso do tabaco por pacientes psiquiátricos constitui-se um sério problema de saúde pública. A expectativa de vida dessas pessoas mostra-se, em média, 25 anos menor do que a da população em geral. Tal qual se vê, dentre os piores vilões, se destaca o tabagismo como o principal.

Conhecem-se as terapias para parar de fumar como seguras e eficazes. De fato, mostram-se capazes, até mesmo, de aumentar o sucesso, no longo prazo, do controle de outros transtornos mentais, diminuindo o estresse, a ansiedade e a depressão e, consequentemente, melhorando o humor e a qualidade de vida.

Aos finais de semana, os internos costumavam receber as visitas de seus familiares e, para deixá-los com boa aparência, as funcionárias providenciavam barba e cabelo aos homens e cabelo e manicure às mulheres. Valdeci gostava de observar a cabeleireira e de auxiliá-la em seu trabalho, tanto que, quando a profissional desistiu de ir, a enfermeira, com tranquilidade, assumiu a função.

Trabalhou por quatro anos no “Cesário Motta”, durante os quais presenciou mazelas e sofrimentos alheios inomináveis que lhe deixaram marcas. Descobriu, enfim, que aquela não era sua verdadeira vocação.

Fez curso de cabeleireira e resolveu empreender, montando seu próprio negócio — o Studio V — onde exercia, na plenitude, seu talento de cuidar, agora, do corpo e da alma das clientes.

Cortes de cabelos, tinturas, alisamentos— todas as técnicas, Valdeci dominava. Em pouco tempo, seu salão encheu, mas continuava às voltas com o tabagismo. Ela e muitas clientes fumavam. Vaidosa, não gostava do cheiro do cigarro nos cabelos. Lavava-os duas vezes por dia.

Hoje, aos 64 anos, e fumando desde os 16, Valdeci resolveu fazer comigo o tratamento e parou de fumar. No início, ficou triste e, chorando, contou que sentia como se tivesse terminado um namoro.

Aos poucos, o fôlego e a disposição voltaram, tanto que retomou as viagens de aventura. Adora atividades como trekking e montanhismo, em especial, na região de São Tomé das Letras, cidade famosa por suas histórias e lendas, cercadas de mistérios.

Coincidência ou não, no passado e no presente, sua história entremeia-se de vivências fortes e marcantes.

*Dra. Juliana Barbosa Previtalli – médica cardiologista, integrante do Corpo Clínico da Santa Casa de Piracicaba; diretora científica da SOCESP regional Piracicaba; idealizadora do projeto antitabagismo “Paradas pro Sucesso”.

*Erasmo Spadotto – cartunista e chargista, criou a ilustração especialmente para este artigo.

A Província apoia o projeto e a campanha antitabagismo “Paradas pro Sucesso”. Para acompanhar outras crônicas desta série, acesse a TAG Paradas pro Sucesso.

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