Das quadras para a vida

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Spadotto

“Aos 10 anos, frequentava o armazém que o tio e os irmãos mais velhos, Hélio e Edmundo, dirigiam e, com eles, escondidos do pai, aprendera a fumar.”

Do fundo da quadra, o jogador arremessa a bola com o braço, num movimento lateral e abaixo dos ombros, e ela chega, com força, do outro lado. O adversário, atento, agarra-a com as duas mãos e, sem deslocamento, passa-a para um companheiro e este, em até dois segundos, para outro que, finalmente, sem pular, joga-a por sobre a rede. Em seguida, recomeçam os passes até que uma equipe consiga fazer a bola cair ao solo da quadra adversária e marcar um ponto.

Um dos esportes mais populares no JOMI — Jogos da Melhor Idade, nome que substituiu o antigo JORI, Jogos Regionais do Idoso —, o voleibol adaptado constitui uma das 14 modalidades da competição que reúne mais de 2.500 atletas de 60 cidades do Estado de São Paulo. Entre eles, encontra-se o Sr. Everaldo Hene Rossini, de 80 anos, um dos destaques do time piracicabano. Alto e magro, tem a agilidade de um competidor muitos anos mais novo — a categoria em que joga é a dos 70 anos ou mais.

Nascera no campo em Piracicaba, na Fazenda Dedini, onde o pai, sobrinho do proprietário, trabalhava como administrador. Cursou o primário numa escola rural, assim como seus nove irmãos. Aos 10 anos, frequentava o armazém que o tio e os irmãos mais velhos, Hélio e Edmundo, dirigiam e, com eles, escondidos do pai, aprendera a fumar.

Aos 16, começou a trabalhar nos escritórios de vendas e de orçamentos da Dedini e lá permaneceu empregado por 25 anos. Cursou, na UNIMEP — Universidade Metodista de Piracicaba — administração de empresas e formou-se em 1974. Nos anos de faculdade, sobretudo em vésperas de provas, chegara a consumir 60 cigarros por dia.

Fumou por 29 anos e, quando, em 1982, se aproximava o nascimento de seu único filho, Renato, resolvera abandonar os cigarros. Não queria dar mau exemplo ao menino.

A conta pelo consumo abusivo da nicotina e das mais de 4.700 substâncias presentes no cigarro, muitas delas tóxicas, como o monóxido de carbono, solventes, como o benzeno, metais pesados, como o chumbo, o cádmio e o níquel, chegaria mesmo 24 anos após abandonar o vício. Tais substâncias, quando inaladas, entram na corrente sanguínea onde são transportadas por todo o corpo. Finalmente, quando o sangue chega aos rins para ser filtrado, as toxinas do tabaco diluem-se na urina guardada na bexiga — um reservatório — e passam horas em contato com essa superfície, podendo causar danos celulares e, consequentemente, o surgimento de tumores.

Apareceu no meu consultório em 2006, aos 63 anos, para uma avaliação pré-operatória. Aguardava a ressecção de um câncer na bexiga por via transuretral. O urologista, Dr. Ayrton Corrêa Filho, avisou que, além da cirurgia, receberia imunoterapia com injeções da vacina BCG — Bacilo de Calmette Guerin, que vinha do Butantã em São Paulo — intravesical, a cada dois dias — a mesma BCG usada para vacinar bebês contra a tuberculose. Essa opção terapêutica mostrou-se eficaz para reduzir o risco de recidiva nos pacientes com câncer de bexiga pouco invasivo e como complemento à cirurgia de ressecção do tumor. Os sinais mais comuns desse tipo de câncer são o aparecimento de sangue na urina, a dor e a ardência recorrentes ao urinar, além do aumento da frequência ou da urgência em urinar.

Ao longo desses anos, desde 2006, compareceu, anualmente, às minhas consultas. Sempre saudável, contava-me sobre as competições de que participava, sobre a integração gostosa com os demais atletas do time e sobre as viagens que fazia, junto à delegação piracicabana, aos campeonatos regionais. Everaldo tomava remédios apenas para controlar a pressão arterial e o colesterol e mantinha-se sempre atento às consultas de rotina com o urologista.

Numa manhã de domingo de 2021, não saíra para se exercitar. Acordara cedo e, ao urinar, notara a presença de sangue na urina. Na mesma semana, seu médico pediu alguns exames e, no ultrassom, detectou um novo tumor com o tamanho de um grão de arroz. O câncer voltara. Desta vez, fez o tratamento, semelhante àquele de há 17 anos, no CECAN — Centro de Câncer da Santa Casa de Piracicaba —, com resultados surpreendentes.

O câncer de bexiga guarda íntima relação com o tabagismo. Um estudo realizado pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo — ICESP —, em 2021, revelou que fumar aumenta em três vezes as chances de desenvolver câncer de bexiga. Observou-se que 65% dos homens com esse tumor fumavam, enquanto, entre as mulheres, 25% delas consumiam cigarros. Também, quanto maior a carga tabágica — número de cigarros fumados por dia —, maior o risco de progressão do câncer para estágios avançados. Quando uma pessoa para de fumar, com o passar dos anos, diminuem as chances de desenvolver o câncer de bexiga — após dez anos, o risco cai pela metade —, mas nunca chega a se igualar ao de uma pessoa que nunca fumou.

Everaldo arrependera-se de, um dia, ter começado a fumar pois, mesmo tendo vencido o vício havia muitos anos, ele ainda o persegue, como um fantasma, até hoje. Mantém a rotina de treinamentos no voleibol adaptado junto às consultas e aos tratamentos médicos. Animado, aguarda, em setembro, a final estadual do JOMI na cidade de São José do Rio Preto. Jogará como titular do time.

*Dra. Juliana Barbosa Previtalli – médica cardiologista, integrante do Corpo Clínico da Santa Casa de Piracicaba; diretora científica da SOCESP regional Piracicaba; idealizadora do projeto antitabagismo “Paradas pro Sucesso”.

*Erasmo Spadotto – cartunista e chargista, criou a ilustração especialmente para este artigo.

A Província apoia o projeto e a campanha antitabagismo “Paradas pro Sucesso”. Para acompanhar outras crônicas desta série, acesse a TAG Paradas pro Sucesso.

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