Ressurreição

O texto foi publicado no livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014.

Contava-me, minha mãe, que nasci às 10 horas da manhã, num domingo, na casa ao lado da Igreja da Matriz. Do horário ela tinha certeza, pois escutara as badaladas do sino quando me deu à luz. Alguns minutos, depois, fui batizado. Recém-nascido, fui apresentado às maravilhas do jardim, às belezas dos grandes quintais, flores, plantas, animaizinhos. Devo ter guardado na alma esses primeiros olhares.

Mas, aos seis anos de idade, cometi um crime, vivendo remorsos para quase toda uma vida. Ganhei do amiguinho Zezo um estilingue. Para aprender a manejá-lo, apanhei uma pedrinha e atirei a esmo. E matei um passarinho. Foi um acidente, mas matei-o. Gritei desesperado por minha mãe e ela, vendo o pardalzinho morto, trouxe algodão e mercurocromo. Tentamos curá-lo, debalde. Então, numa caixa de sapato, eu o enterrei no jardim. E, chorando, coloquei no túmulo dele, uma cruz feita de gravetos.

Quase toda a minha vida senti-me em dívida com o Éden, como se eu o tivesse profanado. E a nostalgia do paraíso perdido perseguiu-me de tal forma que, nos momentos mais difíceis e agudos, lembrava-me do passarinho que matei e aceitava o sofrimento como penitência. Prometi-me construir jardins, plantá-los. Especialmente o jardim da minha alma.

Hoje, não mais em auto-exílio nem prisão, mas num mosteiro pessoal, vejo-me num pequeno paraíso, cercado de passarinhos, de borboletas, de flores, de plantas, de silêncios. E com novos e fiéis amigos, diversos amiguinhos, que nos saúdam pela manhã, que me alegram durante o dia, que se despedem de mim ao anoitecer. Eles parecem consolar-me pelo passarinho morto. E com sua alegria infantil nas árvores como que me dão a absolvição. Vivo a ressurreição nesse meu final de caminhada. E rendo graças a Deus.

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