A imperdoável tolice

O texto foi publicado no dia 22 de outubro de 1982 em O Diario e depois selecionado para o livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Cometi uma tolice, só que imperdoável. Foi ao entardecer, depois de um dia em que até os músculos do corpo doíam, tantas exigências às minhas capacidades de raciocinar. E de tolerar. Não houve um minuto sequer de sossego, de tranquilidade interior, levando-me então a agir como autômato. O telefone que não parava de tilintar, pessoas que praticamente invadiram meu escritório. E assuntos diferentes, no exercício de, em fração de segundos, para deixar de abordar um para então ouvir outros, e a falar deles quase ao mesmo tempo. É uma alternância de assuntos que, penso eu, dilacera o cérebro, esgotando a capacidade de raciocinar e de interpretar.

Foi ao entardecer que o moço e a moça entraram em minha sala. Ele, quase cego, revelava sua preocupação quanto à possibilidade de não mais enxergar. Foi quando cometi a tolice, a imperdoável tolice. Pois, quase num desabafo e numa explosão emocional, falei ao jovem que ele era feliz em não enxergar. Pois eu, naquele momento, o que mais desejava era poder não ver, ouvir e falar: ser cego, surdo e mudo. Apenas pouco depois é que me dei conta de ter cometido o mais grave dos pecados, o de atentar contra os dons da vida. Não sei como pude fazê-lo. Mas o fiz. Em vez de bendizer a Deus pelos olhos que veem e enxergam, por ouvidos que ouvem, por lábios que falam – desejei a renúncia desses dons, na imperdoável tolice de quem não poderia fazê-lo, já que sou prisioneiro da paixão pela vida.

E agora, no silêncio de meu cantinho – quando me sinto plenificado pela madrugada companheira -, penso no que seria de mim se não pudesse ver, ouvir e falar. Pois, ainda na manhã que passou, exultei diante do espetáculo deslumbrante das minhas rosas abertas no jardim, as azaléias avermelhadas derrubando flores no gramado. A beleza do temporal e dos relâmpagos que coruscaram o céu. A prece que fiz, junto à família, à hora das refeições. A música que ouvi, o som da voz dos meus filhos, o silêncio profundo da madrugada que se torna audível com a passagem de uma leve brisa.

São maravilhas do mundo que, a todo instante, posso captar através do som, do olhar, da palavra. E apenas porque durante todo o dia vi e ouvi coisas desagradáveis, quis renunciar ao dom que me enriquece a alma e a minha própria humanidade. Que seria de mim se não mais pudesse ver, ouvir, falar? Conseguiria viver na quase absoluta incomunicação, preso a mim mesmo, a idealizações do tempo e da memória? Um vegetal pensante e nada mais do que isso. E foi o que, tolamente, desejei ser. Foi certamente outro de meus tantos tolos momentos de vida. Bom dia.

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