Música e ruído

O texto foi publicado no dia 24 de agosto de 1979 em “O Diário” e depois selecionado para o livro “Bom Dia – Crônicas do Autoexílio e da Prisão”

Aceito o argumento dos que – dizendo a música não ter fronteira – defendem, ardorosamente, as programações internacionais de nossas emissoras. Realmente, a música não tem fronteiras, está acima e além das pátrias. Se assim não fosse, Brahms, Bach, Mozart, Beethoven perderiam toda a sua universalidade e seriam, hoje, gênios puramente paroquiais. Um Frank Sinatra está, na música popular, acima de qualquer nacionalidade. Concordo com tudo isso e também empresto o meu aplauso. Não concordo é com a desnacionalização total da música brasileira, fenômeno que ocorre como se as emissoras de rádio de todo o país tivessem feito um pacto com as multinacionais do disco.

A impressão que me dá é a de que, pelo menos em matéria musical, não precisarei nunca ir aos Estados Unidos para conhecê-lo. E muito mais fácil ouvir qualquer desconexo e barulhento som dos grupos vocais americanos, guinchos de pseudo cantores, do que ouvir um Chico Buarque de Holanda ou uma Maria Bethânia. Liga-se a televisão e é a mesma coisa. Trazem-nos enlatados e aspirantes a cantor dos Estados Unidos e nos sonegam as jóias musicais, que permanecem desconhecidas das novas gerações, de um Pixinguinha, de Donga e Sinhô. Agora mesmo — longe dos meus discos na chuvosa noite paulistana — vou, nervosamente, virando o dial do rádio, à procura de um som doméstico, de uma música qualquer que diga de nossos sentimentos, uma balada de nossa música popular. E não os encontro.

As emissoras transmitem apenas músicas estrangeiras. Mais do que isso: apenas estadunidenses, o que denota uma tendência, uma pressão, uma coação e não um espírito de universalidade musical. Porque, se este existisse, ouviríamos as modernas canções italianas e francesas, os dolentes fados portugueses. E não. O que nos chega aos ouvidos é apenas o som das discotecas, com seu barulho infernal, com sua desconexão harmoniosa que irrita, enerva, desgasta.

E não são apenas as emissoras da capital. As do interior, também. Fico com a impressão de que jamais fizeram uma pesquisa de mercado, de que jamais auscultaram a opinião pública para saber, de nós, o que desejamos e queremos ouvir. A consequência disso é que crianças e jovens têm sido criticados por sua ignorância musical quanto às coisas nossas, brasileiras, de nossas próprias raízes. Como podem saber se a elas apenas lhes oferecem, como informação, o restolho de uma civilização que nada tem a ver com nossas tradições e sentimentos?

Nunca como agora, penso eu, o Brasil se transformou tanto em tão largo quintal dos Estados Unidos. Chegará o dia em que seremos mais realistas do que o rei. Ainda recentemente, quem assistiu, pela TV, ao jogo entre Brasil e Bolívia, em La Paz, deve ter percebido até onde se estendem os tentáculos das multinacionais.

No rodapé do estádio estavam as mesmas propagandas que infeccionam a alma brasileira: Philco, Doril, Coca-Cola, Ford e até a Melitta, que nada tem a ver com as nossas vovozinhas, mas que procede das avozinhas alemãs. Algo errado acontece nos bastidores das emissoras. Das duas, uma: ou perderam o senso musical ou não passam de cúmplices. Gostaria de acreditar na primeira hipótese, mas não consigo. Então, bom dia.

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