De onde, de quando?
O texto foi publicado no dia 29 de setembro de 1979 em “O Diário” e depois selecionado para o livro “Bom Dia – Crônicas do Autoexílio e da Prisão”
Já contei do restaurante pequenino em que me isolo e me refugio. Um cantinho reservado onde permaneço em silêncio comigo mesmo. É quando medito sobre meu dia, ao sabor de um vinho vagabundo qualquer. Naquele canto, o tempo corre lento, mas seguro, amigo e conselheiro. Procuro fugir da solidão de um quarto de hotel e me recolho na quietude de quem escuta vozes sem precisar ouvi-las. Foi aqui que um garçom me perguntou se sou poeta. Vendo-me, todas as noites, rabiscar folhas e mais folhas de papel, sem ele saber que, fazendo-me a pergunta, abria-me cicatrizes de alma.
Estou em meu cantinho, ainda outra vez. Um casal de namorados ou de amantes sussurra coisas de amor, inaudíveis. Não me interessa ouvi-las. Interessa-me ouvir-me. Deixar que a imaginação voe e que os sentimentos não a aprisionem. Pois, a cada noite e a cada dia, mais vou entrando dentro de mim mesmo. Não haverei de descansar enquanto não chegar ao fundo. Mas – ai de mim! – quanto mais me aproximo mais me vem a vontade de fugir. Porque me revelo, me desnudo, me descubro, me dispo de todos os disfarces e de todas as máscaras. Vou, então, tirando cacos de telha agarrados na consciência, teias de aranha presas na alma, poeiras do caminho grudadas no coração. Quanto mais as encontro, mais a lucidez me atordoa e me confunde.
O uso da razão me deprime porque revela a verdade. Toda verdade é aterradora. Quase apalpo a praticidade, a mecanicidade, a objetividade de tudo o que me rodeia. E, no entanto, sou apenas um teórico, um vibrátil, um romântico. A razão me espanta, a emoção me fascina. A verdade aterradora está em constatar não conseguir conciliar-me com o mundo que me rodeia, onde planto, onde existo. A vida apaixona-me e, ao mesmo tempo, amargura-me. Não é possível o ser humano insistir em viver de perfídias e deslealdades, de batalhas inúteis e sem sentido. Não é possível o homem lutar apenas para sobreviver. Viver é preciso. Sobreviver é-me inadmissível. Viver é dom gratuito que, por isso mesmo, precisa ter a naturalidade, a espontaneidade das águas que correm das fontes com harmonia e simplicidade.
Os homens estão correndo, lutando, agredindo-se, traindo-se. Um mundo que esmaga e devora, que tritura e trucida. Para quê, a troco de quê? São perguntas que me angustiam por estar no mundo e ser um dos humanos que o habitam. Estou e não quero estar, pois, penetrando no mais fundo de mim, vejo-me no tempo, mas me sinto fora dele. Algo indefinível, assim como se o corpo estivesse e a alma ainda não tivesse chegado ou já se tivesse ido. Poderei, talvez, distanciar-me de tudo e de todos. Não posso, porém, fugir de mim mesmo. Eu me acompanho. E não sei onde estou. Não me localizo, nem me situo.
Muitos se dizem – e se orgulham disso – homens de seu próprio tempo e de sua própria época. Minhas entranhas, no entanto, estão gritando por uma abstração que não consigo descobrir. Sou de ontem? Sou de amanhã? É o que continuo a perguntar-me neste meu cantinho silencioso. E tenho medo da resposta. Porque apenas sei que, de hoje, não mais sou, pois já que me esqueci de como se golpeia, nunca aprendi a apunhalar, nunca soube como fingir. É infinita a ânsia que sinto de amar todas as coisas. De saborear todos os favos de mel. Mas não me deixam. Desgraçadamente não me deixam. Até quando? Bom dia.