“In Extremis” (19) – A jardinagem interrompida

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(imagem: reprodução Pixabai)

Então, considerando alguns sintomas, o médico perguntou: “Qual é a causa de tudo isso, você sabe?” Ele atentara para o que afirmara ser irritação, hipertensão, raiva, indignação, sei lá mais o quê. “Estou ficando velho…” – respondi. Ele discordou: “Ficando, não. Você já envelheceu.” Discordei apenas por discordar.

Mas ele insistiu, preocupado com o estresse de seu paciente. “Precisamos descobrir a causa disso.” Comecei a levar a sério a consulta. E, num relâmpago de lucidez, tomado de uma como que melancolia, ainda mais abatido, admiti: “A causa de tudo  é o Brasil.” E um hílare amargor veio-me à boca.

E ele, o médico – em sua serena sabedoria asiática – perguntou-me com doçura irresistível: “Compreendo, mas o que você pode fazer por sua própria conta?” Foi como desmontar o meu castelo de ilusões, revelando-o ser de areia ou, apenas, um castelo de cartas. Areia, areia… Veio-me, então – não sei se à memória, se ao coração – um trecho da doída canção: “… eu escrevi, na fria areia, um nome para amar. O mar levou… ”Ora, por que ignorar castelos de areia? Quis defender ilusões, mas lembrei-me de como se encerrava a canção: “tudo acabou, palavras leva o mar.”

Ao sair do consultório médico, vi e ouvi jovens estudantes garrulando, saltitando nas calçadas. Ri-me de mim.  Pois a tolice parece ser infindável no ser humano. Há as adoráveis tolices das crianças; as heroicas tolices dos jovens; as confusas tolices das pessoas maduras. E, em especial – penso nisso agora – as desastrosas tolices dos velhos. Ora, que estupidez a minha sofrer, continuar sofrendo por um país cujo povo, em sua grande parte, recusa-se ao brilhantismo, optando pelas trevas?  Onde me deixei levar, num tempo em que grupos governantes afirmam ser, a Terra, plana? Quanta tolice?

Caminhei lentamente, para respirar e pensar melhormente.  Continuei sorrindo. Mais e mais, sorrisos de iluminação e quase que condoídos de mim mesmo. Será – por Deus! – que, ainda outra vez, eu escolhera a luta errada? Será que eu não tinha aprendido após tantas e tantas vãs batalhas? Lembranças da sonhadora adolescência acompanharam-me pelo curto trajeto. E lá me vi, eu, após o suicídio de Getúlio Vargas (1954), retornando de uma seresta boêmia, violão debaixo dos braços, ouvindo minha mãe chamar-me a seu quarto. Quase embriagado, estirei-me em sua cama e jurei: “Mãe, eu vou reconstruir o mundo!” Ela, sem revelar qualquer ironia: “Isso mesmo, filho. Se é o que você quer, tente.”

Foi uma linda tentativa, épica. Mas nada consegui. Resolvi, então, mudar o Brasil! Também não consegui. E, de década em década, vi-me na obrigação de mudar o Estado de São Paulo; depois, Piracicaba. De derrota em derrota, quis transformar meu quarteirão, minha família. Até que, já brancos os cabelos, encontrei a resposta: transformar-me a mim mesmo! Começar por mim.

Ao desfazer-me de “O Diário”, escrevi – lembro-me bem e com leveza n´alma – que iria tornar-me jardineiro. Fazer, com doçura e agradecimento, um jardim de flores, árvores, plantas. E um outro – o principal e o mais difícil – um jardim dentro de mim mesmo. Em minha alma. No coração.

Era o que eu vinha fazendo. Até que o Brasil escolheu brutalizar-se. Enfureci-me e, agora, compreendo melhor: foi a fúria de me ver atrapalhado na descoberta da sacralidade da vida. Cedi à tentação de, novamente, ensarilhar armas. Errei. Assumo-o, agora. E retorno à jardinagem que, ao fim, nada mais é do que a nostalgia do Éden perdido. Ela foi apenas interrompida. Prometo-me não ter recaídas.

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