“In Extremis” (188) – Não há paz sem justiça

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(imagem: S. Hermann / F. Richter, por Pixabay)

Vivi, com toda intensidade e lutas, os amargos anos da ditadura militar neste país. O golpe inicialmente civil-militar ocorreu ainda aos meus longínquos 23 anos de idade. E já jornalista. Sei, com pleno realismo, o que foram aqueles anos em que nos roubaram a liberdade, anos de crueldades, de torturas, de mortes, de violências físicas e morais.

Ainda agora, entendo que uma entre as diversas causas que continuaram a conturbar o Brasil foi, quando ao estertor da ditadura, impuseram-nos a “anistia geral e irrestrita”. Estive entre os poucos jornalistas que, à época, discordaram. Pois “anistia geral e irrestrita” significava perdão a todos os delitos políticos, anulação de condenações, suspensão de investigações de todos os lados. Enfim, criminosos e vítimas, malfeitores e inocentes – todos foram nivelados por concessão dos próprios tiranos. O Brasil precisava de Justiça, não de anistia. De determinar responsabilidades. Não o fizéssemos, as consequências teriam que ser desastrosas, já que se declararia oficialmente a impunidade. Aconteceu.

Uma das consequências de a ditadura não ter sido julgada esteve viva e perniciosa nestes últimos quatro anos com o retorno de militares autoritários – mesmo que na reserva – ao governo que se finda. Um deles, mentor principal, é Augusto Heleno, defensor intransigente de um Estado antidemocrático. A anistia poupou-o. E ele retornou. Ressentido e com uma ainda mais amarga sanha de vingança. O povo, porém, reagiu à destruição e voltou a alimentar suas esperanças nessa personalidade invulgar que é Lula.

Com Lula, a esperança é a de retomarmos o nosso lugar no mundo civilizado. No entanto, surgem falácias que, passando por verdades, impedem a busca de justiça. Uma delas é a de não existir o conflito entre “nós” e “eles”. Lembro, num repente, da “Canção dos Tamoios”, na qual o esquecido Gonçalves Dias (1823-1864) clamou: “Não chores, meu filho, não chores. Que a vida é luta renhida. Viver é lutar”.

Sim, viver é lutar. O sonho e o desejo da fraternidade universal continuam sendo a grande utopia da humanidade. Seria o país, o lugar ideal, mas imaginário. “Ou-topos”, na origem grega da palavra, “lugar que não existe”, dada à luz por Thomaz Morus. Todas as religiões idealizaram essa utopia onde não mais haveria “nós” e “eles”. Cristo fez a síntese de todas elas e o cristianismo, há dois mil anos, prega e aguarda a “vinda do Reino” à Terra. Mas a humanidade insiste em dividir-se, dando razão, até aqui, a duas figuras revolucionárias: Darwin e Marx. O primeiro entendeu, ao estudar a natureza, o princípio da “lei do mais forte” para a sobrevivência. E Marx constatou a amarga realidade da “luta de classes”. Como negar a tristeza de continuarmos a viver o “nós” e “eles”?

Não são possíveis a concórdia, a paz, a harmonia num país onde se radicalizou o confronto entre o bem e o mal, entre pacifistas e desordeiros. Não há acordo quando os propósitos são radicalmente opostos. Como podem unir-se os que usam revólveres como argumento e os que argumentam com a lei, a ordem moral e a justiça? Não há convivência entre o joio e o trigo. Para este crescer, servir de alimento, há que se eliminar aquele. Lula haverá de conseguir a conciliação entre pessoas dignas que se opuseram entre si nos últimos tempos. Isso é alentador para o Brasil. Mas terá que impedir, em definitivo, a ascensão dos maus, dos rancorosos – dessa erva daninha que tentou matar a generosa e fértil humanidade brasileira.

Urge que “nós” derrotemos “eles”. Para sobrevivermos. A paz exige justiça.  “Viver é lutar”.

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