Fim de mundo, novo mundo

Tem-me sido difícil, confesso-o, cortar na minha própria carne jornalística. Dói. Mas tenho-o feito. Pois a imprensa que aí está – com exceções tão raras que deixaram de ter importância – nada mais tem a ver com a imprensa e o jornalismo que me apaixonaram nos distantes e quase dinossáuricos 1950. Jornalismo não era profissão, mas compromisso, vocação, serviço, privilégio. Ser aceito numa redação de jornal era ingressar num Panteão de cérebros especiais, tidos, até mesmo, como deuses humanos.

Sou do tempo em que ser jornalista não era opção, mas destino. E era tão sofrido e árduo que havia, nele, uma sacralidade pagã: jornalistas eram hóspedes do Panteão, jornalistas eram marginais da vida. Pois jornalista, sacerdote, poeta, artista, prostituta, bandido – toda essa gente excêntrica estava fora do eixo da normalidade ditada pelo poder dominante. Foi de Marx, permanece ainda hoje: “A cultura dominante é a cultura da classe dominante.” O grande problema, hoje, está em saber se há classe ou apenas poderes dominantes.

Permito-me dizer ainda outra vez: meu pai foi o meu referencial de homem, de pessoa, de ser humano.Com outra meia dúzia de pessoas – pouco mais, pouco menos – meu pai se me tornou, desde a mais tenra infância, no meu mais completo e apaixonante exemplar de humanidade. Ele tinha todas as virtudes e era capaz de todos os defeitos. Lembro-me de vê-lo pacífico e bondoso, mas, também, furioso, bravo, violento, agressivo. Ele não era herói, não era mágico, não era líder de nada. Meu pai era um homem doce, todo feito de coração, com olhos capazes de chorar, com mãos imensas que pareciam veludo nas carícias que fazia.

Pois bem. Essa criatura, meu pai – meu referencial de humanidade – entrou em desespero quando percebeu minhas vocação e tendência para o jornalismo, para a literatura, para o humanismo, para opção pelo belo e pelo bom. Então, temendo pela minha sobrevivência, meu pai tudo fez para impedir a minha carreira jornalística e literária. Certa noite de minha adolescência, ele quebrou, em minha cabeço, o violão que me acompanhara em serestas juvenis. E, quando me decidi a ser escritor, ele me levou a um psiquiatra, à espera de que eu fosse dignosticado como louco. Quando, aos 16 anos, ingressei no Diário de Piracicaba, dirigido por Sebastião Ferraz – seu companheiro de Maçonaria – meu pai tentou impedir-me o acesso, falando a Ferraz: “Diga que ele está errado, que ele não tem talento. Não quero que meu filho seja um marginal na vida, um jornalista que luta contra o mundo.” Ele sabia o que era o jornalismo. Mas, enfim, me apoiou quando se rendeu ao que ele entendeu ser uma escolha, uma vocação.

Perdoe-me, o eventual leitor, por essa reflexão. É que, também eu, estou indignado, assustado, apalermado com as artimanhas, jogos de dissimulação, artes de simulação da grande imprensa brasileira. Não tenho o receio de dizer, lamentando-me por tê-lo que fazer: a imprensa brasileira – apesar de exceções – perdeu o caráter, escolhendo trocar a vocação missionária pelo pragmatismo empresarial. E, na cegueira dos alucinados por proveitos próprios ou de grupos, não está percebendo que se desmoraliza dia a dia, que se amesquinha, que se prostitui. E, ainda mais grave, não percebe que se ridiculariza numa falsa comunicação, ação entre amigos, onde e quando uns poucos falam para outros poucos.

Na verdade, estou querendo dizer que, neste dia 30 de novembro de 2009, volta a terminar um mundo, um mundo de lutas bravias e heróicas de alguns, mas de malandragens e de safadezas de outros. Sempre, no calendário cristão, aconteceu esse mundo que se acaba, um outro que inicia. Mas, agora, a rapidez é tal que essa morte e esse nascimento são acelerados. 2009 termina hoje. Dezembro começa e ninguém mais irá se importar com problemas, com corrupção, com malandragens, com jogos sujos, com máfias de ambulância, com mensalões, com sanguessugas, com obras de governos – incluindo os municipais – que geram grandes comissões e negociatas. 2009 acaba hoje.

Será estúpido, pretensioso ou tolo o jornalista que, a partir de agora e até o revéillon, escrever a respeito de problemas. O povo não mais quer saber disso, irá recusar-se a ouvir, a ler, a acreditar. Até depois do Carnaval, tudo são doçuras e alegrias. E essa tem sido a sabedoria de Lula: enquanto a oposição fala de horrores e de misérias, Lula acena com um mundo mais próximo de Poliana e do dr.Pangloss. É, no fundo, o que todos queremos. Pois, por mais tentemos negar, cada um de nós acredita em Papai Noel. Bom dia.

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