Razão poluída, coração limpo

picture (10)A propósito, ainda, do e-mail da leitora, acabei pensando no todo sofrimento de parto daquele romance. Até hoje, não sei porque decidi publicá-lo, se por cansaço, se por libertação.

Há coisas das quais dificilmente o ser humano se liberta. Por isso, admito estar, ainda e tolamente, bloqueando respiros que acolhi, bem-aventuranças que me encharcaram, numa resistência teimosa, quase acovardada. Tento, de quando em quando e ainda, resistir à fonte e lugar de origem de todas as verdades: o coração. Nada se sabe, nada se conhece e nada tem importância se não tiver acontecido nele. Ao nascer, já está dentro do coração esse cofre da sabedoria e das revelações. Pulsando nele, está tudo o que existiu antes, caminho já desvendado para seu dono, coisas escritas desde as mais escondidas funduras dos tempos. Basta ouvi-lo. E senti-lo. O resto é a tola absurdidade do mundo. É preciso coragem para admiti-lo. Mas isso dói.

A minha razão permanece ativa. E ainda entende jogos de poder, farsas econômicas, mentiras estruturais e conjunturais. É a monótona roda da vida, feita de espertezas ridículas, pois a esperteza não tem imaginação. A razão, poluindo as mentes, pode tentar contaminar o coração. Como impedir?

Aquele livro ficou mofando nas gavetas antes de ir a público. Contaminada, a razão inibia-me, bloqueando o livro nascido do coração: por quê publicá-lo, a quem interessa, entre vivos e mortos? Infernos e céus e purgatórios são tormentas e enlouquecendo a razão. Mas, no coração, eles se apaziguam, como num lago plácido. O ser humano está além da dimensão cartesiana. A alma escapa ao controle do corpo e de leis e de regras. O coração arrebenta, estilhaçando-se nas vestes de deuses e demônios. E eis, então, o homem diante de seu esplêndido e doloroso caos, vulcânica explosão de si mesmo, desnudo. “Ecce homo”: incontrolado pela razão, mas apaziguado pelo coração.

Um meu amigo, velho e sábio, mantém-se recolhido em seu deserto sempre fértil. Procurei-o para contar de meus sustos, as três vezes da pancada no coração. Da primeira vez, o som do mar, cheiro de maresia – vindos de longe – invadiram-me a sala de televisão, sussurrando coisas e nomes. Na segunda, eu estava no mar, a voz veio de fora, como se de sereias brincando na praia. E da terceira, vi-me empurrado, caí ao chão, de joelhos, ao som do “Tannhäuser”, de Wagner. Foi ao meio de uma tarde de domingo, de azul límpido. E a luz, sobre o jardim, fulgurante. Fui incapaz de erguer-me. O homem sábio falou, sem mais comentar: “Foi o Inefável.”

Não sei o que, como foi. Se poluiu-se a razão, sinto – quando a jornada se a- longa – o coração limpo, exultante de uma alegria feita de inocência. Se esperta, a razão, bobo é o coração. Que sofre mas, por sofrer, mantém-se limpo, vivendo o que já estava nele. A razão bloqueava-me a publicação do livro. Mas o coração ouviu o grito do personagem, como o salmista fazendo a súplica de si mesmo: “Tem piedade de mim.” Ou súplica ao mundo? Ainda não sei, até hoje não sei. Não sei.

Limpo, o coração venceu. E se me confirma: não há outra saída senão viver pelo coração. Pelo menos, para quem viu o Inefável e viveu o Nefando. Bom dia.

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