A lei de Mr. Lynch

Mr. LynchO Cardeal Emérito D.Eugênio Salles foi um dos mais lúcidos prelados brasileiros que, ao tempo da ditadura militar, se tornou um dos principais protetores dos perseguidos e torturados. D.Paulo Evaristo Arns despontou, podia-se dizer, como um militante da reação à ditadura, ocupando a linha de frente. D.Eugênio Salles adotou outro estilo, o da diplomacia, trabalhando sem confrontar os ditadores. E seus serviços foram inestimáveis, especialmente quando na Arquidiocese do Rio de Janeiro.

Já idoso, embora de lucidez invejável, D.Eugênio Salles, nestes dias, falou a simplicidade que os brasileiros indignados precisavam ouvir: “Bandido precisa ser tratado como bandido.” Pois, graças a equivocados movimentos tidos como de defesa dos direitos humanos, vimos progressivas distorções que fazem com que bandidos cruéis sejam tratados com deferências revoltantes. É como se não mais houvesse gradação nas penas e nos crimes, de forma que um estupro ocasional – sempre condenável, é óbvio – seja punido no mesmo nível de estupros animalescos, cruéis, impiedosos. Um garoto, transportando droga, pode ser mais severamente punido do que um traficante poderoso, que se mantém fora do alcance da lei.

A brutalização dos tempos atuais chegou a níveis indescritíveis. Fica cada vez mais difícil diferenciar realidade da ficção, o virtual do real. Lembro-me, apenas para ilustrar, de quando o terror alcançou as Torres Gêmeas em Nova York. Amigos me telefonaram, avisando-me para ligar a televisão e ver a tragédia. Liguei e vi um avião atingindo a torre. Pensei fosse algum filme, talvez do Bruce Willys. Ou do Stalone. Continuei procurando. Vi as mesmas imagens e, no cúmulo da minha indiferença, pensei fosse o mesmo filme em canais diferentes. Até que, enfim e após alguns segundos, percebi a monstruosidade real. O terror e o horror tornaram-se habituais em nossas vidas.

Confesso que, atualmente, revisei uma série de conceitos anteriores. Um deles é em relação a bandidos cruéis, monstros, desumanos. Houve época em que acreditei a lei devesse ser justa e caridosa, como propusera Agostinho de Hipona. Hoje, tenho, para mim, que a lei deva ser apenas justa. E cada vez mais dura e rígida diante de horrores e crueldades, face a crimes monstruosos e repugnantes. Por que a sociedade tem que manter na prisão – dando-lhe cama, comida, roupa lavada – o monstro sem redenção? Ora, não passa de bazófia e de falácia a pretensão de que a pena seja parte de um processo de ressocialização do criminoso. Não é. A pena é vingança da sociedade. Na realidade, a justiça é vingadora, havendo que punir os que rompem o contrato social e, em especial, os que afrontam a própria dignidade humana. Afinal de contas, o direito à vida está intimamente ligado ao dever para com ela. Quem não é digno da vida não a merece, esta é a verdade simples e linear.

Um homem estuprou, matou e jogou no lixo uma criança de quatro anos. Um outro confessou ter estuprado 40 mulheres. Foi filmada uma megera que, em sua escolinha maternal, torturava e, sadicamente, punia criancinhas quase de berço. Como se falar em compaixão ou em espírito de justiça caridosa em relação a tais pessoas? Se ninguém percebeu ou ainda não quer admitir, já estão no ar sinais eloqüentes de saturação do povo, que ameaça fazer justiça pelas próprias mãos. Há um cansaço vital diante da impunidade, da lentidão da justiça, do excesso absurdamente burocrático de recursos judiciais. A gravidade dos horrores que se repetem, que se multiplicam leva a uma também progressiva descrença na justiça. E, a partir disso, a milenar reação instintiva pela lei das selvas, pelos tribunais populares, ensandecidos e incontroláveis. A civilização, por descuido e irresponsabilidade, está à beira do colapso. E isso é histórico.

Multidões têm, cada vez mais, ameaçado bandidos cruéis de linchamentos. Linchar criminosos foi a lei do cansaço do povo nos Estados unidos, em meados do século 19, diante da violência e inoperância dos tribunais. Um fazendeiro da Virginia, William Lynch, criou um tribunal privado responsável pelo julgamento sumário de criminosos apanhados em flagrante. Os bandidos cruéis passaram a ser “lynchados”. O Brasil começa a assistir a esse espírito tribal e já há multidões de pessoas que não mais se oporiam a que fosse linchado o monstro que estuprou, matou e jogou no lixo a criancinha. Ou há? Por que manter preso, alimentado e com um teto tal monstro? Como diria o Barão de Itararé, “há mais coisas no ar do que simples aviões de carreira.”

Quando a justiça falha, quando o direito é achincalhado, quando a civilização se brutaliza, retornamos às cavernas. O materialismo alucinante sufocou o humanismo. E, desgraçadamente, a lei da selva ressurge. Em pleno século 21, estamos como que assistindo a e participando de filmes do Velho Oeste. Nos quais, no entanto, o bandido vence. Se tratarmos bandidos como mocinhos, transformando mocinhos em bandidos, não sobrará pedra sobre pedra. Para desgraça de todos nós. D.Eugênio Salles deu-nos a senha: “Bandido precisa ser tratado como bandido.” E bom dia.

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