“Route 66” e 1958

picture (35)Nunca entenderei associações cerebrais, surpreendendo corpo e alma onde acontecem. Pensa-se em macarronada e surgem imagens, aparições, idéias em torno de Monet. Por quê? E a “Route 66” com as comemorações da Copa do Mundo de 1958?

Essas coisas ocorrem-me quando do barbear-me. Alguém me explicou que por ser o único momento em que me vejo cara a cara, olho no olho. Sei lá. De repente, pensei na Copa de 1958 e me apareceu a Route 66, a estrada da liberdade, de um tempo que alucinou jovens de todo mundo. Ora, e se o estranhamento tivesse a ver com o apocalíptico número da besta, o 666? Mas é preciso atentar: 66 é duas vezes o número seis. Não fez, Deus, o mundo em seis dias e descansou no sétimo? E se fosse um sinal, aviso? Voltei a suspirar. E imaginei o 66 simbolizando – por que não? – o selo de Salomão, o duplo triângulo entrelaçado, as seis direções do espaço, a fusão do corpo e da matéria, não é bonito?

Preferi tomar o espírito de Alice e acreditar no País das Maravilhas. Ora, eu estava quase ouvindo merencórios sons “de profundis”. E, então, o 66 se transformou em visões paradisíacas, viagens sem fim, paragens generosas, um estilo de ser, promessa de aventuras, “voilá”, a “Route 66” aberta em minha vida, a “estrada mãe” de Steinbeck acolhendo os famintos e, abrindo-se depois aos “beats” e, agora, eles de volta – por que não? –Jack Kerouac, “on the road”, pé na estrada, o mundo que se dane, rodar por aí, de moto ou de carro ou no lombo do pangaré, descansar em postos de gasolina, dormir em motéis, não fazer barba, ficar à margem da estrada, namorar sem compromisso, telefones mudos, filhos e netos vivendo suas vidas, “laranja madura à beira da estrada tá bichada, Zé, ou tem marimbondo no pé”. Por que não?

Uma “route 66”, aos 68 anos, tem tem tudo ver com Copa do Mundo de 1958. Pois, há a certeza de longa caminhada, soma de experiências que cansam apenas de lembrar. De repente, percebe-se, ao mesmo tempo, tudo tão vivo e tão morto. Entende-se, então, que, realmente, as coisas não são. Nem as pessoas. E, portanto, que tudo se está fazendo, construindo-se, sem ser e ainda não sendo. Há o que foi. Dou-me conta de ter acompanhado todas as 16 copas desde 1950. As que virão não interessam mais. E as que passaram são lembranças: meu pai, em 1950, dando um murro na mesa da cozinha, ao lado do rádio, rachando a madeira; o “complexo de vira-lata” afirmando-se no desastre de 1954; com minha namorada, na Avenida São João, 1958, papéis picados caindo de prédios então residenciais; 1962, a alegria dos tapes de televisão; a morte anunciada de 1966; a magia de 1970, em cores e ao vivo. Depois, tristezas e alegrias poucas, mesmo nas vitórias.

O ano de 1958, de tão mágico, nunca será suficientemente cantado. Foi, sim , a “route 66” do tempo, dos milagres, do maravilhamento, da esperança. Quase não acredito que se passaram 50 anos desde o momento mágico em que o jovenzinho Pelé se transformou em rei do mundo. Havia paixão em tudo. Por isso, é impossível sentir-se à vontade em tempos tão pérfidos, frios, pragmáticos e brutalizantes como os atuais.

Há, na alma dos que sobreviveram, uma “Route 66” eterna. Quem a viveu não consegue aceitar o que veio depois. Essa globalização é formidável para quase tudo. Mas eu continuo vivendo na caverna. E, por mais belo tudo seja, é minha terra que tem palmeiras onde canta o sabiá. Minha cabeça pôs o pé na estrada, lá se vai “on the road”. Mas fico no meu canto. Na “route 66” particular, descubro: o tempo é de ficar. E bom dia.

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