A perda do remorso

No sentido especulativo, de contemplação, conseguimos criar muitas teorias. E, no entanto, quase nenhuma delas somos capazes de colocar em prática. Por inúteis, ficam no ar. Mas, ora bolas, coisas inúteis podem servir, muitas delas, para alguma coisa. Pois, se há supérfluos necessários, há, também, o inútil necessário. Ou deveria haver. Por exemplo: penso, hoje, que acreditar em política é inútil e é supérfluo. Mas necessário. Sem pão e circo, o povo sacode o mundo com insurreições e revoltas. Que, às vezes, mudam a história.

Quanto a reflexões inúteis, tenho carinho especial por uma delas: a morte do remorso. Ora, remorso resulta do que a consciência reprova, o que remói e se remói dentro das pessoas, a alma acusando. Mas o remorso parece ter morrido dentro das pessoas. E, então, surge-me a questão do pecado. Que está em falta mas é essencial em minha teoria. Porque, com o pecado, voltaria o medo. E pessoas com medo passam a ter respeito pelo e pelos que a cercam. Ou é possível viver num mundo que não seja respeitável?

A volta do pecado, penso eu, é fundamental para a volta também da lei e do direito, que ambos andam sumidos. Pecado e crime têm um, pelo menos, traço comum: o castigo. Onde houver castigo haverá medo da punição. Se for bonzinho, vai para o céu; se for pecador, irá para o inferno. Se isso voltasse a ocorrer com o pecado, voltaria, inevitavelmente, a ocorrer também em relação à lei: quem a respeita merece prêmio; quem a viola é punido.

Direito e religião tem muita coisa em comum. Prêmio e castigo, céu e inferno, liberdade e prisão. Justiça e Igreja têm semelhanças: o juiz condena ou absolve; o padre intermedeia o perdão. Aquele, em nome do direito; este, em nome dos céus. Dependendo da sentença, lá virão o céu e o inferno na vida e na alma das pessoas. Mas se ambas as instituições não forem dignificadas, céus e infernos, prisão ou liberdade não têm significado algum. Cada um fará o seu mundo pessoal, sua lei, sua religião.

O retorno do pecado implica, também, a volta de deuses e demônios. Pois Deus somente existe se houver diabo. Já o diabo, por sua vez, vive do jeito que gosta, com ou sem Deus, mais ou menos do jeito que o ser humano tem vivido. Com uma vantagem: agora, não há nem mais Deus, nem deuses, nem diabos. Liberou geral. E o Direito voltou às prateleiras. Para minha vã filosofia, as coisas estão claras: quem tem medo do diabo tem medo de cadeia. Logo – mesmo contrariado – esforça-se para respeitar leis religiosas e leis civis. De medo, respeita até o próximo.

Eu não sabia da morte do remorso. Pois continuo com remorsos e arrependimentos sem fim. Há coisas que fiz e nunca mais consertei. Por muitas, pedi perdão e desculpas, nem sempre fui perdoado ou desculpado, mas pedi. Outras há que – mesmo arrependido de tê-las feito e ser perdoado pelo que fiz – me marcaram pelo remorso que ficou. Remôo-as, remordo-me, que remorso é remoer, remoer-se, remorder, remorder-se. Ora, se é verdade que morreu o remorso, por que, tantos deles, tenho-os ainda tão vivos em mim?

Eram do Nepal os mercenários considerados os mais cruéis do mundo. A técnica para construir essas máquinas humanas de matar era inquietante, não sei se ainda usada. Eles aprendiam a matar formigas, baratas; depois, ratos. Em seguida, gatos, cachorros. Enfim, matam gente. E, então, tanto se lhes faz matar um rato ou uma criança. Sem remorso. Forjaram-lhes a consciência para matar, mostrando ser, a alma humana, algo que se amolda.

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