Amor ao e de destino

picture (96)Chovia muito. O óbvio seria ficar em casa, o aconchego, a poltrona diante da televisão, ficar feito bicho-preguiça. Ou um livro, o abajur. E – por que não?–apenas o silêncio, inventando haver orquestra de chuva no telhado, Bach sonhando na sala, estalidos de madeira. E olhar através de vidraças: chuva caindo, lâmpadas amarelas de postes distantes, talvez um vagalume assustado acendendo-se de medo. Mas pensei em sair, perambular.

Jung impressionou-se com estalos de madeira. E, dos estalares, desenhou toda uma arquitetura de vida. Viver é arquitetar. Também. Então e talvez – quem sabe? – viver nada seja senão o que se desenha e com que se sonha, desenho e sonho. E, portanto, desejo. A vida resumir-se-ia – será? – na soma de desejo, sonho e desenho de cada um. Sem isso, morre-se logo ao nascer. Sei lá: sem desejos e sem poder arquitetar os sonhos, o homem nasceria escravo. E, então, nascer haveria de ser castigo. Mas não é. Nascer é deslumbrar-se.

O caboclo de qualquer de nossos sertões ouviu e entendeu o mesmo que Jung: estalos de madeira. Pois madeiras estalam. E cada estalo delas pode encerrar segredos. E, também, podem ser apenas estalos, simples estalos. Depende de ouvidos de ouvir. E de não ouvir. E de olhos de ver. Ou de não ver. Não ver, não ouvir, não cheirar, não tocar – não seria o maior de nossos castigos? Pois – apesar de nós – o mundo existe. E a vida explode.

Era, enfim, a noite chuvosa, quase fria em pleno Verão. Não ouvi estalos na madeira. Mas o telefone tocou duas vezes. Incomodei-me de estar em casa, o aconchego, a quentura de caverna. Ora, em tempos nebulosos, aconchego é bom demais, emoliente, compressa na alma, ungüento, lenitivo. Conforta mas não resolve. De alguma forma – sei lá do porquê – estar bem é quase o mesmo que morrer um pouco, devagarinho. É como se a paz do homem, paz da carne, fosse ausência de guerra. E, sem guerra, o homem falecesse. Talvez, desfaleça. Pois a guerra do homem não tem apenas violência ou morte, mas, também, a conquista, o desafio, a busca , a procura. A guerra do poeta está na busca da rima. A do cientista e do filósofo, no garimpo da explicação.

Na noite quieta e após os dois telefonemas, quis acreditar pudesse inventar a vida, reinventando a minha. No fim das contas, a vida é invenção em cada cotidiano. Viver é inventar, reinventar. Quem não inventa fica à espera. De algo ou de alguém. De certa forma, é ir-se deixando morrer aos poucos. Não sei. Mas soube um pouco mais na noite de frio.

Na verdade, eu me perturbara. Os telefonemas inquietaram a mornidão da caverna. Num deles, o amigo dizia da falta de sentido da vida, homem lá com seus 60 anos. Mas que sentido precisa ter a vida? Noutro, a confissão trêmula do homem de 81 anos, mais do que amigo: ele estava apaixonado. E escrevera um poema à amada, no esplendor dos 75 anos dela. Recitou-me os versos, tornando-me cúmplice de sua paixão. Como os enamorados de todos os tempos e lugares, ele rimava dores com amores, paixão com coração. E vida com querida.

Então, lembrei-me do “amor fati”, o amor ao destino,de destino, a fórmula de Nietszche para a grandeza humana: aceitar a vida e o destino e, então, fruir tudo. Um “nada pretender ter de diferente, nada pela frente, nem para trás, nada por toda eternidade.” Aos 81 anos e com a namorada de 75, eles viviam o “amor fati”, amor à vida, amor ao destino. O necessário dele não fora “para suportar, menos ainda para ocultar, mas para amar.” Ouvi um estalo na madeira da alma. E decidi ficar em casa. Bom dia.

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