Amor de caboclo, amor de apache

Os amores acabam ou se consolidam, penso eu, quando um dos enamorados – ou os dois – se pergunta: “por que, mesmo, eu ainda amo essa pessoa?” Pode haver respostas. Ou não haver nenhuma. Ama-se por amar-se, ama-se sem explicação, ama-se por haver motivos, um só ou mil deles.Ou nenhum. E deixa-se de amar da mesma forma: por um ou diversos motivos, por motivo algum, sem razão alguma que explique. O amor acaba ou se consolida. Ou se transforma em outros sentimentos e formas de conviver. Também, em hábito.

Mas o amor humano estende-se além das pessoas. Ama-se a casa, o lugar, amam-se situações, às vezes é um simples gostar. E amam-se lugares, a cidade, o país. De repente, então, pode acontecer também de alguém perguntar: por que, mesmo, eu ainda amo o meu país? E a minha cidade? A simples pergunta dói. Pois, mesmo sem aguardar a resposta, é como se já se soubesse de máscaras caindo, de sentimentos ruindo, de ilusões arruinadas. E não adianta evitar a pergunta: quanto mais se foge dela, mais insistente ela fica – por que, mesmo, ainda amar o país, minha cidade??

O adolescente ama a namorada por, como na musica, ser “bonequinha linda, de cabelos de ouro, olhos tentadores, lábios de rubi.” Um belo dia, abre os olhos e vê que a boneca quebrou. Quanto ao Brasil, confesso ter-me cansado de meu amor de adolescente. É cantilena que se mantém há 500 anos, desde a carta de Caminha, a do paraíso encontrado, onde sempre seria Primavera em oposição ao “Outono do mundo”. Mas, segundo ele próprio, lugar “sem lei e sem rei”. O paraíso foi-se consumindo. Tem reis mas continua sem lei. Piracicaba, também. Por que ainda a amo, se está sendo destruída mesmo quando oportunistas dizem estar renovando-a? Cadê a nossa história, cadê a alma do povo, cadê a dignidade dos ancestrais?

 

Começo a cansar-me de querer cantar que minha terra é “cheia de flores, cheia de encantos”, pois a corrupção lhe mina os alicerces. E já nem mais sei por que amo o meu país. E isso dói. Cansei de dizer “minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá.” Cansei de Bilac: “Criança, ama com fé e orgulho a terra em que nasceste.” Cansei das delícias do estar “eternamente em berço esplêndido” ou, à Conde Afonso Celso, cantar doçuras para explicar “porque me ufano de meu país”. E cansei do anúncio estático da Ordem de uma bandeira que – mostrando símbolos de floresta, ouro, céus e estrelas – mascara a desordem de uma nação.

E o “País do Futuro”? Stefan Zweig – quando nos deu o livro, em 1941 – era considerado um dos mais completos escritores do mundo, recolhido ao Brasil, amargurado com a tragédia nazi-fascista sobre e na Europa. Apenas para relembrar e justificar meu cansaço, transcrevo palavras do crítico Afrânio Coutinho ao lançamento do livro famoso: “O Brasil é como as mulheres bonitas: têm apaixonados de toda a sorte, até os desinteressados. Não querem nada, nem um olhar, nem um sorriso, nada. Basta-lhes amar. Chamam a isso `namoro de caboclo´: até a namorada o ignora… Era assim o amor cavalheiresco. Goethe resumiu-o, numa frase: `Se te amo, que t’importa?´ Zweig é assim.” Nós, também.

Já se foram quase 70 anos e há gente falando, ainda, em “país do futuro”, agora melancolicamente desvelado em decisões do governo federal voltadas a volumes intensos de obras, de perfurações em alto mar, enquanto há um Brasil onde mães vendem suas filhas para prostituição. E, neste “país do futuro”, minha cidade – que foi exemplo de civilidade, de cultura – virou um canteirinho de obras, com pontes, rotatórias, enquanto crianças continuam esmolando, homens e mulheres desesperando-se por falta de atendimento à saúde, a educação fracassada e, acima de tudo, a insegurança coletiva, com a vitória de bandidos e marginais. O mundo já mudou, mas Piracicaba ainda pensa em economia neoliberal, em produtividade, no esquecimento do ser humano. Por que nossos políticos não fazem um acordo com contrabandistas, deixando que eles cuidem da periferia, dos desempregados? E que tal uma contribuição mensal do tráfico para obras sociais, para a a saúde, para patrocinar lazer e cultura?

Por que, mesmo, ainda amar este país? E esta cidade? Não sei, mas ainda amo. No fundo de tudo, é “amor de caboclo”, que ama sem nada esperar, ou “amor de apache”, que ama para apanhar. E esse amor não morre, não sei se feliz ou infelizmente. Bom dia.

Deixe uma resposta