Asas da alma não são da internet

InternetA minha forte miopia, devo-a também à luz das velas. A herança genética é um fato, mas pais, irmãs, parentes contavam-me que, num racionamento de eletricidade dos 1950, eu me escondia no fundo do porão para ler gulosa e insaciavelmente. À luz de velas. E me lembro de imagens, de cenas, de sombras, acho que muito parecidas às do mito de Platão. Ao bruxuleio de velas, as sombras eram todo o meu mundo. Com elas, teci minha alma.

Quando aconteceu um apagão, vi-me, como todo o povo, impotente, sem reação, indefeso. Para que computador, internet, toda a sofisticação informatizada de minha casa, de meu lugar de trabalho se nada funcionava? Isolado do mundo, vi-me, novamente, na caverna. E tomei de velas, de lápis, de folhas de caderno. Sentei-me sob árvores e escrevi, à maneira de minha infância, em retalhos de papel, como se fossem círios inspirando-me a alma, o luar clareando palavras escritas. Emocionei-me e descobri ser possível voltar a viver sem computador, sem internet.

Quando escrevia, deu pane em tudo. O computador parou, a conexão com a internet desapareceu, ninguém soube explicar as causas. Mais uma vez, vi-me exilado do mundo, impotente, incapaz, dependente, a sensação de fragilidade absoluta, de minha vontade e minhas forças não servirem para nada. E tive medo de minha vida não mais depender de mim mesmo. E medo de, por tanto confiar na tecnologia, ter-me tornado vítima dela, um subordinado. Senti-me tão pequenino e indefeso que pensei em moscas e formigas. Mas, principalmente, pensei no milagre de, sendo tão limitado e finito, o homem ter realizado tantas maravilhas e, ao mesmo tempo, tantas indecências diante da vida. É o paradoxo incontornável: todas as belezas e todas as feiuras, todas as grandezas e todas as misérias; toda força e toda fraqueza.

Redescobri o medo. Com o computador, era como se a tecnologia resolvesse tudo por mim. Sem ele, senti-me frágil. Começo a entender. A falsa certeza de onipotência esconde o sentimento mais vital e criador do ser humano: o medo. Por medo da chuva, o homem inventou o abrigo; por medo da noite, descobriu a luz; por medo da solidão, inventou a lareira, o fogão, a família. Sem medo, não cria. O medo da morte redobra a vontade de viver.

Andei num carroção de boi, sempre me lembro disso. As estradas eram ora de poeira, ora de lama. E o homem dominava o animal, enfrentando a natureza. O mistério da vida reduzia-se aos limites do mundo: uma porteira, uma estrada, até mesmo um conto de fadas. As pessoas eram aquilo que enfrentavam, o que podiam enfrentar. O resto era o mistério, segredos indesvendáveis e, por isso mesmo, deuses e demônios. Sou do tempo em que existiam deuses. E, por isso mesmo, também demônios. E fadas e bruxas e ilusões e fantasias. O computador é pragmático.

Andando no carroção, o boi mugia, o homem tangia o boi. Havia poeira e lama. Quando o boi empacava e as rodas do carroção afundavam na terra molhada, o homem superava os obstáculos com a sua força física e com a força d’alma. Havia algo concreto a ser vencido. E, depois, vi a charrete, um passo além. Mas eram, ainda, o animal e homem, o humano vencendo a natureza física, o seu universo palpável, cognoscível. E, depois, o automóvel. E, então, o homem descobrindo o motor, seduzido pela voragem da velocidade.

O primeiro veículo que dirigi era uma carrocinha de madeira e, à frente dela, estava um bode. Para acelerar, eu gritava: “xô”, e o bode andava. Para frear, eu berrava: “ô”, o bode parava. Éramos eu e o bode. E a estrada. Havia limites. Muito tempo depois, meu pai comprou um Fordinho 29. A bordo daquele carro fantástico, sentía-nos capazes de enfrentar o vento, a chuva, os temporais. O motor, penso eu, despertou-nos a volúpia da divindade. Fizemo-nos deuses, enfrentando o tempo, tentando vencê-lo, querendo ser mais rápidos do que os ventos que sopram caoticamente. Fica, ainda, a indagação, dolorosa: viver é ordem ou é caos?

Vi, na verdade, mitos destruídos, vejo mitos criados. Parado, sem poder escrever, descubro estar, minha vida intelectual e profissional , no computador, em discos, na máquina. Com medo, reajo. Não posso admitir que, por se desligar a televisão, a festa acabe; por estar sem computador, o mundo diminua; por ficar sem eletricidade, mergulhe na escuridão. A alma tem asas próprias. Não precisa da internet para voar, Deo gratias.

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