Cartas de amor

Sempre hesito diante do conselho de Rilke ao jovem poeta: “Não escreva cartas de amor.” Às vezes, questiono-me: “Por que não?” Em outras, concordo: “Não deveria ter escrito.” O fato é que cartas de amor podem ser um bem ou um mal. Como, aliás, o é o próprio amor. Afinal de contas, o amor humano é o que existe entre duas pessoas subordinadas aos humores do tempo, com suas dificuldades, dores, alegrias e tristezas. Cresce, definha, sobrevive, morre. Na realidade, o amor, por mais belo seja, é sempre trágico. E a maneira de melhor entender isso, acho eu, é lembrar que, na vida, a comédia é aquilo que começa mal e termina bem. E a tragédia começa bem e termina mal.

Mesmo o mais belo e profundo amor termina mal. Pois, se foi capaz de resistir a tudo – aos problemas, às agruras, às diferenças e desequilíbrios – é incapaz de resistir à morte. Talvez, a grande dor de um casal feliz esteja no desamparo diante da morte do outro. Digo-o por ter presenciado essa tragédia, como já o revelei algumas vezes. Ora, se acredito em que o amor verdadeiro existe, acredito pela vida de meus pais. Foi, para os filhos, o mais belo testemunho de amor, como se eles vivessem, até mesmo quando velhos, a adolescência do amor. Eles não se largavam, ficavam de mãos dadas, olhares cúmplices, uma união que não se abalou nem mesmo pela morte de filhos. Acredito, ainda hoje, no amor por ter vivenciado o de meus pais. E, no entanto, também por causa deles, sei ser trágico o amor. Pois, quando minha mãe morreu, foi tão intenso o sofrimento de meu pai que o levou à obsessão: ele ia ao cemitério pela manhã, para, no túmulo de minha mãe, dizer-lhe bom dia; e voltava ao entardecer, para lhe dar as boas noites. Alguns meses depois de ela ter-se ido, fui chamado para socorrê-lo: ele estava caído no túmulo de sua amada, finando-se como se soubesse estar indo ao encontro dela. Morreu de amor, de ausência, de saudade.

Mas, e as cartas de amor? Que importa se – sendo sinceras quando escritas – se tornarem comprometedoras ao depois? O amor não sobrevive se ficar embutido, mudo, silencioso. Há que se manifestar, e cartas de amor são – ou eram? – um encontro que encurta distâncias, que consegue transformar a ausência em presença. Creio que existam, ainda, cartas de amor. Mas sem o carteiro para entregá-las. Sem venezianas de janelas para recebê-las no silêncio de segredos. Aliás, não há mais segredos de amor. Tudo se escancarou e uma enxurrada de pressas, de rapidezes, de tensões se misturam entre internautas, a vida pessoal exposta para todos. Cartas de amor eram segredos guardados em cofres especiais. Tinham cheiro, perfume. E, até mesmo, pétalas secas de rosas vermelhas. (Já ouço jovens rindo-se do que lhes parece ridículo. Não sabem , porém, que, talvez, tenham nascido graças a esse ridículo de amor. Pois o amor é também ridículo.)

Tenho um casal de amigos muito queridos que, na noite de núpcias, firmaram um compromisso: quando chegassem às bodas de prata, 25 anos depois, eles voltariam a viajar apenas para reler as cartas de amor que se escreveram um ao outro. Quando a data chegou, levaram uma mala especial onde estavam cartas, bilhetes, guardanapos de papel nos quais diziam de seu amor. Fiquei com inveja, pois minhas bodas de prata poderiam ter acontecido no mesmo ano que as deles. Mas não chegamos lá.

Chegando o Dia dos Namorados, casado e amando minha mulher, fico tomado de uma quase angústia por causa de cartas, de bilhetes de amor. Pois, quando morreu minha primeira mulher, os filhos me entregaram algumas caixas onde a mãe deles guardara nossa correspondência de amor. São cartas escritas desde a adolescência, quando começamos a namorar. Toda manhã, indo à escola, eu passava por onde ela morava deixando-lhe, no vão da veneziana, um bilhetinho de amor. À noite, sob aquela janela, meus amigos e eu fazíamos serestas apaixonadas, oferecendo-lhe rosas roubadas aos jardins da cidade, com mais juras de amor escritas. A mãe dos meus filhos guardou tudo, inclusive pétalas secas de flor. Agora, após sua morte, as cartas e bilhetes voltaram para mim. Mas não consegui, ainda, abri-las, relê-las, como se, nelas, estivesse o gênio da lâmpada. E se ele escapasse? E se o tempo retornasse? E se a vida fosse um filme que estaria passando do fim para o começo?

Incomoda-me, ainda, o conselho de Rilke para o jovem poeta não escrever cartas de amor. Por que não? Se todo amor é trágico, por que não deixar registrada a beleza de quando esteve vivo e jubiloso? Mas é bobagem minha. Escrevo também para uma geração que diz amar sem ter vivido a magia de uma seresta. E os moços não roubam mais flores de jardins. Que pena!

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