Cinzas…

Gostei, antes, muito de Carnaval. E houve tempo em que, encerrada a terça-feira gorda, íamos à missa do Monsenhor Jorge, logo de manhãzinha, para comungar e receber as cinzas. Os corpos ainda suados, cheirando a lança-perfume, felizes mas já prontos a purgar pecados e exageros cometidos.

Nos últimos anos, desisti, preferindo o silêncio, o recolhimento, na verdade um novo propósito de vida. No entanto, neste último Carnaval, tive a sensação de ser e estar renascentista. Pois parecem-me, as coisas, estar descendo a ribanceira, em marcha ré. Quando se fala em fundo do poço, vejo e sinto ao contrário: um retorno à planície. Da montanha, desceu-se, caiu-se, mesmo que atropeladamente. Ao acreditarmos estar chegando ao topo, tudo despencou. Somos, um pouco, como o pintor no alto da escada, caindo. Tombando sem abandonar o pincel, teremos que começar de novo.

Sei lá que raios de associações a mente humana faz, sei lá que raios também faz a minha. Mas, aos poucos, foram-se somando indícios, ligando-se uns a outros: eu havia recebido um convite para um baile de Carnaval só com marchinhas, das novas e das antigas; grupos que resolveram fazer blocos carnavalescos pintalgados de inocência, de brincadeiras, de picardia; gente querendo saber do “Zé Pereira” e outros lembrando até de Chiquinha Gonzaga, “ó, abre alas, que eu quero passar.”

E minha cabeça também despencou do alto de alguma montanha do cotidiano e caiu na “Commedia dell´Arte”, o espetacular jogo das máscaras, o teatro, a improvisação. Ora, a comédia é anunciação da tragédia. E as tragicômicas figuras do Arlequim, do Pierrô e da Colombina, mais do que me passarem pelos olhos da lembrança, estiveram ali, ao alcance das mãos.

Na França, pela influência da Itália renascentista, um grupo de atores também italianos criou uma das mais tristes histórias de amor, um triângulo amoroso que permanece vivo até essa chegada da Era de Aquário. É história vinda da fundura dos tempos, mas com personagens ainda mais farsantes: Pierrô, Arlequim e Colombina. Nunca houve Carnaval sem eles.

Aliás, talvez, não haja vida sem esse jogo de seduções, de amor, paixão e traições. Quando os sambódromos substituíram essa comédia de arte e de vida, o Carnaval se transformou em um fulgurante programa de televisão. Marchas e blocos tentam, penso eu, ressuscitar não o Carnaval, mas um sentimento, um espírito, uma festa que, no mais profundo de si mesma, é mais religiosa do que profana.

Carnaval, na verdade, é um tempo da vida. Que acontece num palco e com atores. Pierrô é o personagem sentimental, insinceramente crédulo e ingênuo, pois a sua expressão de tristeza no rosto diz mais de sua dor do que de sua falsa alegria. Os refinados trajes de palhaço não lhe ocultam o lamento de seu próprio bandolim. Amar Colombina é viver a farsa, pois tem um rival mais vivaz, mais adequado à transitoriedade do Carnaval: o Arlequim, que simboliza o sedutor, o malandro, o farsante, a partir dos próprios trajes, feitos de pedaços triangulares de retalhos de pano. Colombina, a também falsamente ingênua camareira de quarto, é volúvel e esperta, enfarada com Pierrô, animada com Arlequim. E eis a eterna tragédia de amor: um Pierrô apaixonado pela Colombina que o trai com o Arlequim.

Na realidade, é uma antiga história da humanidade, que os desfiles de escolas de samba esqueceram. Mas que está viva. Até estas nossas décadas despudoradas, a traição exigia engenho e arte. Nada era descarado. Civilização são máscaras. Sambódromos pensaram ter matado histórias de amor. Pensaram

Ora, usar máscaras é fingir. Na verdade, mente-se até mesmo para com a própria máscara que se usa. Para não se assumir como Arlequim, finge-se de Pierrô. Pois é mais fácil choramingar de um amor perdido do que admitir a covardia do amor vivido e abandonado. Amores de Carnaval são como amores de Verão, amor de praia: passam. Mas deixam marcas. E pelo resto da vida.

Antes, havia uma certeza: amor de Carnaval era eterno enquanto durava. Agora, não há mais olor de Carnaval renascentista. Sobram apenas cinzas do antes. O agora está confuso. Bom dia…

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