Da saudade em Natal

picture.aspxHá algum tempo, um cronista, lamentando-se da perda de sua vesícula biliar, escreveu ter sentido dor “maior do que a da saudade”. Horrorizei-me. Pois ou aquele homem nunca conheceu a dor da saudade ou se brutalizou.

Não pode haver dor maior. Deus – certamente atacado da cólera santa – alcançou o seu mais alto grau de crueldade e de sadismo ao inventar a dor da saudade. Eva e Adão não morreram por terem-se tornado mortais. Morreram da imortalidade da saudade do que tinham sido, da nostalgia de onde tinham vivido, a infinita dor do bem perdido. Que é tão agônica e permanente, tão corrosiva dor que somente deuses e demônios poderiam tê-la inventado.

O mais cruel dos homens seria incapaz de criar, para seu inimigo, tal sofrimento sem fim. Inventaram-se a prisão perpétua, a pena de morte, as torturas física, psicológica, mental – mas o homem foi incapaz de inventar o castigo da saudade, maldade exclusiva dos senhores dos céus e dos infernos.

Sempre me lembro de quando Thales de Andrade contou-me de seu livro “Saudade”, que fecundou o imaginário de muitas gerações. Ele dizia das advertências que amigos, incluindo Lobato e Sampaio Dória, lhe faziam quanto ao título. Sendo livro infantil – diziam-lhe – o título “Saudade” poderia ser inadequado, pois “criança não tem saudade”.

Professor primário em escola rural, Thales fez um teste com seus pequenos alunos. Quem tinha saudade? E, tendo-a, era saudade de quê? Uma a uma, as crianças falaram do que sentiam, da saudade que levavam no coração. Ou na alma? Zezinho: “da goiabada que minha avó fazia.” Mariazinha: “das férias na fazenda de meu tio.” E Pedrinho, no fundo da classe: “saudade da minha mãe que morreu.” Desgraçadamente, pois, também as crianças conhecem a saudade. Que, no final das contas, nada mais é do que a dolorosa observação atribuída a Ruy: “saudade é vontade de outra vez.”

O que há de tão desesperador quanto a vontade de uma irrealizável outra vez? Saudade mata. É agonia lenta, vagarosa, ferida que se não fecha, pois regada, dia e noite, com gotículas de fel. Dói e não arde. O coração se esconde, a alma se recolhe, o cérebro tenta fugir. E, fingindo ser as de um passarinho inofensivo, as bicadas alfinetam, injetando mistura insuportável de fel e de mel. Que, pingando no coração, faz recordar e, então, mata. Gotejando na alma, tenta fazer esquecer, mata também. Morre-se de recordar, morre-se de querer esquecer.

A saudade é a alma transformada em Sísifo: carrega-se a pedra da dor como se, levando-a ao alto, desse por finda a expiação. E, quando no alto, vendo-a novamente rolar, começa-se tudo de novo. É a tragédia cotidiana de não conseguir matar e não conseguir morrer. Ou o castigo infinito de conviver com uma dor que não é dor, com uma tristeza que não é tristeza, com amargura sem amargor. E penitência ainda mais cruel: a de ser íntimo de felicidades antigas que já não nos deixam felizes, de alegrias que não alegram, de encantos que deixaram de encantar.

A saudade de entes queridos distantes é a dor da espera, da esperança e da expectativa, da dúvida, da incerteza. Como a do pai do filho pródigo, olhando a estrada, à espera, sempre à espera. A saudade de gente querida distante é velório permanente e permanente ressurreição, desespero e esperança. Hoje, eu os mato e sepulto. Amanhã, faço-os ressuscitar. Até enlouquecer. Em tempo de Natal, piora. (Ilustração: Araken Martins.)

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