Demônios do meio dia

picture (85)Quem não conhece, hoje, amigos às voltas com problemas de depressão? São questões sérias que, sem apoio médico, podem agravar-se, tornando-se distúrbios comprometedores. No entanto, não são problemas novos, algo que – mesmo com nossas escolhas humanas enlouquecidas – se possa dizer exclusivo de nossos tempos. Quem pode sentir-se feliz numa sociedade que, no altar do lucro, cultua o consumo e a festa permanente?

Lembro-me de um amigo, contando de sua amargura diante da exigência da filha adolescente. Ele terminara de pagar a prestação do automóvel ainda novo, com menos de dois anos de uso. A adorável menina batia o pé para que – a exemplo dos pais das amiguinhas – ele trocasse o carro por outro, do ano. No rosto do homem, gravaram-se marcas da tristeza, da auto-estima baixa. E qualquer pessoa poderia dizer-lhe que o seu já era um estado depressivo.

Depressão, certamente, é o nome atual para o que, na Roma Antiga, os sacerdotes – exorcizando-os com incenso – chamavam de “demônios do meio dia”. Era a dor do mundo infiltrando-se entre os homens, trazendo a melancolia, a tristeza, a insatisfação como castigo dos deuses. Para os franceses, essa angústia, a apatia, o pessimismo – soltos debaixo dos céus – eram o “demon du midi”, que, no romantismo, se tornou o “mal de siécle”.

Dramaturgos, poetas, escritores escreviam invocando a morte, mergulhados na tristeza sem fim, na desesperança, na perda de interesse, no desânimo. Nos mosteiros, religiosos diziam-se atacados por malfadados “demônios meridianos” a que, hoje, chamamos de depressão.

Ora, nada entendo de ser humano, um bicho que me espanta. Mas encontrei a maneira mais agradável, pelo menos para mim, de olhá-lo e, portanto, de olhar-me: no homem, tudo é possível. Muito lá atrás, Terêncio deixara registrado que, por ser homem, nada do humano lhe era estranho. Somos a invenção da natureza capaz, ao mesmo tempo, de criar um Bach e de gerar matadores de crianças. Finitos, queremos o infinito; humanos, vivermos a nostalgia dos deuses, almejando o lugar deles. Como, então – com tantos fantasmas e demônios – não sentir depressão?

Certa vez, li – e não tive como discordar – que fantasmas são piores do que demônios. Estes, os demônios – do meio-dia, da manhã, da noite – são vivos e, portanto, há como matá-los e espantá-los. Fantasmas são mortos que nunca morrem. Ficam guardados, escondidos, talvez alimentados por nossas próprias amarguras e frustrações. De repente, eles aparecem. Reaparecem. E não sabemos como viver com eles, nem como viver sem eles. E se tentássemos matá-los, não iríamos morrer junto?

Diz-se que a depressão pode acontecer até mesmo sem causa específica. Nisso, não acredito. A causa é sempre a mesma: a natureza humana, essa insatisfação infinita, copo que jamais se enche, desejo que nunca se satisfaz. Parece uma doença da gula: sofrer por desejar coisas, pessoas, o mundo à própria imagem, à sua maneira. É caso clínico, sim. Mas – também ou especialmente – caso para uma grande, uma imensa, uma sonora gargalhada. Acho – pelo menos funciona para mim – que a melhor maneira para evitar a depressão é a pessoa não se levar muito a sério. Damo-nos importância demais, importância que não temos. Rir é ótimo remédio. E rir-se de si mesmo, o melhor de todos. Olho-me no espelho, fazendo a barba, divirto-me: “Como vai, bocó de mola?” E o riso afugenta demônios e desconserta fantasmas. Bom dia.

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