O cabeleireiro que ficou analista

CabelereiroUm amigo de infância, após algumas andanças pela vida, decidiu ser cabeleireiro de profissão. E se tornou um dos melhores, com prestígio, fama boa e clientela selecionada. Em meu entender, salão de cabeleireiros — como as antigas barbearias — é onde a vida acontece em sua forma mais prosaica, quase diria que banal, não fosse o charme das aparências. Precisa-se de muita arte para viver o ramerrão do cotidiano, essa quase sensaboria. Descobrir o encanto do dia-a-dia é faina de garimpeiro.

Pois bem. De tanto ouvir a mesma cantilena nas prosas das pessoas, meu amigo cabeleireiro resolveu tornar-se também psicanalista. Foi, segundo ele, decisão ponderada, meditada. Explicou-me não ter precisado de curso universitário especial, de diplomas oficiais, de exames ou de residência, como os da OAB ou de médicos. Não sei se é correto isso, mas ele me disse que “depois de longo percurso como psicanalisado, o psicanalisando se dá autorização para se tornar psicanalista.”

Não sei se é assim mesmo. Mas — embora meu respeito por respeitáveis amigos psicanalistas — já vi coisas do arco-da-velha, dessas que se encontram em todas as atividades humanas. Certa vez, aceitei o convite de uma jovem psicanalista da qual era paciente um parente meu. A moça queria saber de minha possível influência sobre a pessoa psicanalisada, seu psicanalisando, sei lá se uso palavras e termos corretos. Fui, ainda que desconfiado. Deitei no divã, ela pediu que eu tentasse relaxar. Obedeci. Foi ótimo. Quase dormi. Mas, ao sair da letargia, ela me deu seu parecer: “O senhor está tomado por forças do mal, diabólicas.” E me sugeriu visitar uma mãe-de-santo que, segundo ela, sabia como expulsar os demônios que me habitavam.

Retorno a meu amigo cabeleireiro, fazendo-lhe justiça. Pois, na verdade, o principal motivo que o levou a se tornar psicanalista foi a profunda reflexão que fez de tudo o que ouviu de homens e mulheres em seu salão: “É tudo a mesma coisa. As pessoas, tirante uma ou outra, têm as mesmas dificuldades, vivem os mesmos problemas. Se eu, como cabeleireiro, converso e ajudo as pessoas, por que não ganhar dinheiro falando as mesmas coisas e cobrando por isso?” E, em outro endereço, atende seus clientes não mais como consultor de beleza, mas como médico de almas, como ele mesmo diz.

Ora, não sou maluco de negar ou minimizar o gravíssimo problema das depressões humanas. Elas existem. Mas nem tudo é depressão doentia. Deveríamos assumir que doentias estão a civilização e a sociedade que inventamos. Acho, sei lá, que o Dandismo — ainda vivo sob outras formas — pode explicar quase tudo. Desde o Belo Brummel, de Byron a Baudelaire e chegando a Joãosinho Trinta, os verbos permanecem os mesmos: parecer, aparecer, ser. Mais parecer do que ser. Aparecer para parecer. Parecer para aparecer.E, então, ser. Eis, pois, formado e armado o mundo do espetáculo. Como não entrar em depressão?

Permito-me insistir: depressão existe e é grave. Mas nem tudo é depressão. Nos meus 18 anos, eu quis morrer tuberculoso como os poetas malditos. Comecei a beber e a fumar desesperadamente, a esperança de, chegando aos 25 anos, escrever o poema definitivo e, tossindo sangue, morrer nos braços de alguma amada ou num quarto de pensão. Não consegui, entrei em depressão. Meu pai resolveu o problema: “Esse moleque precisa de uma enxada ou de um facão. Se for cortar cana, não ficará pensando nessas bobagens.”

Não morri aos 18, não morri aos 25 anos e culpei meus pais que se riram dos meus sonhos de morte romântica. E jurei que haveria de ser mais compreensivo em relação a meus filhos. E fui. Sou da geração estupidamente psicologizante, geração de discursos e de teorias, de irrealismos ridículos. Um dia, um filho meu, adolescente, quis uma conversa íntima para expor a decisão que tomara. Fechamo-nos em meu escritório, fiquei todo atento. E ele, nos seus 14 anos: “Pai, resolvi fazer uma experiência de vida.” Tremi. Aguardei a besteira. E ele: “Resolvi que vou ser reprovado. Quero ter a experiência de tomar bomba na escola.” Explodi: “Sai daqui, vagabundo. Eu lhe compro uma enxada para você cortar cana.” Meu pai tinha razão.

Meu amigo cabeleireiro e analista diz estar feliz da vida com o mercado, especialmente, segundo ele, o de adolescentes. “Formou-se uma corrente”, explicou-me. E funciona articuladamente: “Faço o cabelo da mãe, ela me conta das dificuldades de diálogo com o filho, acaba enviando-o a meu consultório.” Esqueci-me de perguntar qual das profissões lhe é mais lucrativa, se a de cabeleireiro, se a de psicanalista.

E se há desconto quando mãe indica filho.

Publicado originalmente no Correio Popular.

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