Eterna primeira vez

picture (10)Na verdade, a tentativa foi a de represar emoções. Aconteceu-me, porém, de tomar uma inesperada decisão. E começo a querer seja irreversível. Pois decidi que, a partir de agora tentarei tudo seja , em minha vida, uma primeira vez. Ao acordar, será meu primeiro amanhecer. Ao dormir, terei meu primeiro adormecer. E, no amor, cada vez será minha primeira vez de amar. Então, deixarei de ser tolo acreditando que as coisas apenas se repetem, pois isso não é verdade. Tudo é único, inimitável, irrepetível. A grande tolice é termos transformado em banal o que é singular. E, em vulgar, o que é feito de filigranas de magnificência.

Não existe um ontem. Há a continuação dele, a que demos o nome de hoje. Por isso o tempo passado não acabou. E nem a emoção e o susto daquela primeira chuva que tomei no quintal de minha infância, sentindo-a como bênção na nudez de meu corpo de menino. Houve outras vezes, sei que houve. Mas não me lembro delas e agora sei a razão: eles, banhos de chuva que tomei em plena nudez, foram apenas a continuação do primeiro. Eu é que não percebera esse milagre, o “mysterium tremendum”, de tudo ser único, original, inimitável mesmo quando se repete.

Comecei com o abrir matinal de minha janela. Pensei que a paisagem fosse sempre a mesma: o jardim, as flores, o talude coberto de plantas, primaveras escandalosas esparramando-se, borboletas voando, passarinhos fazendo festa. E não é assim. Cada manhã é uma primeira vez. Pois é o olhar que sabe das coisas, não apenas os olhos que, quase sempre, olham conforme a razão. Que se deixe o olhar caminhar sozinho e, então, ele enxerga o que existia e não se vira antes. É o mesmo céu, mas não é o mesmo. Cada olhar é uma primeira vez. E a flor da alamandra era a de ontem mas não era a mesma na sua continuação para o hoje. Antes, eu a olhara pela primeira vez e, se olhasse pela segunda, eu a veria da mesma forma. Depois, olhei-a novamente pela primeira vez. E ela era a mesma, mas sendo outra.

Pois assim tentarei seja este meu novo ano, que me reservo para mim como se fosse ano sabático, a descoberta de ser o mesmo de minha infância, aquele que me marcou, o primeiro que existiu na história de minhas emoções. Naquela Noite de Reis – como a que se aproxima – vi que nem mesmo o Natal houvera terminado, pois, minha mãe mandara deixar os sapatinhos aos pés da cama, no quarto pequenino. E, então, de madrugada, ouviu ruídos de papel e alguém que saíra do cômodo, na escuridão da noite. Levantei e, dentro dos sapatos, havia presentes embrulhados, bolinhas de gude, um boné. Disseram-me ter sido mimos de um dos reis magos, entrando pela fresta da janela. E eu quis acreditar, como acreditei em Papai Noel, ao descobrir que ele era meu próprio pai.

Em noite de Natal e em Noite de Reis, o menino era eu. E Papai Noel e os Reis Magos eram meus pais. Aquela primeira vez ficou para sempre em minha vida. Preciso, pois, matar as tolices vivenciadas, matar racionalidades estéreis e permitir que, por todos os sentidos, cada dia seja como uma alvorada primeira e, em seguida, um primeiro anoitecer. Será, então, eternidade. E bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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