“Eu critico, tu NÃO criticas…”

ReiHá coisas que tendem a se esclerosar. Não mudam. Antigamente, dizia-se haver uma diferença crucial entre médicos e jornalistas: o médico pensa ser Deus; jornalista tem certeza de o ser. Tudo continua como está. Talvez, até mesmo mais declaradamente: médicos pensando ser deuses, jornalistas tendo certeza de sua própria divindade. Julgam-se intocáveis, com melindres que fogem à mais simples observação analítica.

A imprensa é, historicamente, o espaço do contraditório, das opiniões em conflito, da pluralidade de pensamento e, acima de tudo, tribuna de vigilância e defesa de direitos entre os quais a liberdade e a dignidade do ser humano são valores primordiais. Imprensa e pensamento são sinônimos. Imprensa e ideais, também. A revolução francesa aconteceu a partir de panfletos, de escritos, de idéias, de proclamações de intelectuais, filósofos, jornalistas. A escravidão negra foi arduamente banida a partir de lutas incessantes tornadas públicas pela imprensa. Os Estados Unidos libertaram-se do jugo inglês por força do pensamento de seus intelectuais que formaram um povo a partir de idéias, de escritos, de panfletos. A República é expressão do pensamento humano, desde Platão. Enfim, imprensa são idéias, ideais, algo profundamente missionário, em nível de sacerdócio. Ou era. Imprensa faz parte do poder ideológico, que não pode ser contaminado pelas duas outras vertentes do poder, a econômica e a política. Quando há contaminação, surge a promiscuidade.

Uma das grandes farsas da atual campanha eleitoral está na tentativa de se semear a boataria de que há cerceamento, no Brasil, à liberdade da imprensa. Não é verdade. O que existe, ainda, são resquícios de leis da ditadura que permitem ao Poder Judiciário uma interpretação equivocada que se confunde com censura prévia. O “Estadão”, que tanto proclama estar sob censura e que declarou seu apoio ao candidato do PSDB, parece ter-se esquecido de que provocadores da censura à imprensa estão no próprio PSDB, pelo menos em Piracicaba. O atual presidente do PSDB de São Paulo, deputado por Piracicaba, foi um dos censores da imprensa local. E o prefeito também. Mas o “Estadão” ou se esquece de que ele próprio publicou, em notinha quase de rodapé o que aconteceu em nossa cidade, ou finge não se lembrar. Até mesmo jornais censurados fingem que nada aconteceu.

O jornalismo verdadeiro não é profissão, mas vocação. Por isso, não se aprende em faculdade que, no máximo, poderá ser uma fonte de teorias e de ampliação de conhecimento. Não se criam jornalistas; fazem-se a partir de quem nasce com talento e vocação para jornalista. Quem tiver apenas talento poderá não ir à frente. Quem tiver vocação irá, mesmo que com pouco talento. E quem tiver talento e vocação será jornalista brilhante até o fim de seus dias. Vocação é chamamento que se não esgota nem com a passagem do tempo.

Quando jornais se transformam em grandes empresas de comunicação, o jornalismo acaba, de alguma forma, contaminado pela necessidade gerencial de lucro, pela importância das relações públicas, pelo envolvimento com amizades poderosas como ocorre em qualquer outra atividade mercantil. Nesse momento, a liberdade da imprensa já está comprometida, não havendo necessidade de qualquer censura exterior. Há o que se chama de “narcisismo de grupo”: jornais, rádios, emissoras de tevê tornam-se parte de um mesmo grupo que harmoniza o ideológico, o econômico e o político. Essa associação adquire poderes por assim dizer divinatórios, julgando-se intocável. As grandes revoluções populares aconteceram como atos de desespero não tanto como reação à força do poder, mas ao poder da força.

A liberdade é um valor humano de tal forma precioso que não pode ser banalizado ou apenas usado como artifício, subterfúgio ou pretexto. A imprensa tem que ser livre para pensar, expressar idéias e pensamentos. Mas não é livre – pois isso seria imoral e amoral – para mentir, falsear, ludibriar, simular e dissimular em favor de grupos ou de famílias. E uma imprensa verdadeiramente livre não tem medo de ser criticada, contestada, alvo de discórdias. A imprensa, por ser um espaço de discussão, tem que ser a primeira a admitir o contraditório, a contestação.

No entanto, o complexo de ser deus que se avoluma no jornalismo, transforma a conjugação do verbo criticar em uma farsa imoral. Jornais e jornalistas há que assim o estão conjugando: “Eu critico, tu NÃO criticas, ele NÃO critica; nós criticamos; vós NÃO criticais, eles NÃO criticam.” No fundo, no fundo, há o medo de se tornar verdadeira a descoberta do menino da fábula que, olhando o cortejo real, falou o que outros tiveram receio de dizer: “O rei está nu.” No caso, os deuses estão nus. Bom dia.

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