Um tucano em meu jardim

TucanoTenho visto passarinhos diferentes, estranhos, encantando os espaços de meu jardim. Há cantos, piares também novos a meus ouvidos que não conseguem distinguir, uns de outros, os instrumentos dessa orquestra natural. Mas é como se fossem violinos harmonizando-se com pianos, violoncelos, trompas. Vejo as aves voando, bailando, pousando nas árvores e não consigo imaginar como as multidões humanas suportam a loucura suicida das ruas, do trânsito, dessa estúpida guerra do cotidiano.

Admiro muita coisa, encanto-me com elas, nem sempre sei de seus nomes. Com pássaros, acontece o mesmo. Com exceção de um que outro – beija-flor, sabiá, pica-pau, anu – não sei nomeá-los. E nem os conheço pelos sons que emitem, ainda que me arejem o cérebro e me lavem a alma. Foi quando, de repente, percebi algo novo, asas enormes que apareceram na vidraça da sala de jantar, que voaram sem que eu lhes visse bicos ou restante do corpo. Aconteceu uma primeira vez. Depois, a segunda. Comentei com minha mulher: “Acho que é um pica-pau enorme, não deu para ver direito.” Mas a ave berrava, um berro que parecia estralo.

No meio da tarde, os olhos de meu filho, passeando pelas árvores, brilharam, maravilhados: “Olhe, pai. É um tucano!” Não quis acreditar, mas o amarelo do bico imenso destacava-se entre as flores do ipê e das buganvílias. Ele parecia soberano entre os demais pássaros e soberano entre as cores. E, como se brincasse conosco – numa mensagem que começou a me intrigar – ia e voltava, voava e pousava. Foi a primeira vez que vi um tucano verdadeiro ao vivo, na natureza, esplêndido em sua desconjuntada harmonia, o que provava que a beleza pode ser desconjuntada. Vi o tucano verdadeiro e maldisse, dentro de mim, políticos que o adotaram como símbolo. Trata-se de uma apropriação indébita da beleza, o que é indecente.

No dia seguinte, ele voltou. Tem voltado. Vizinhos viram-no também, vêem-no. Como num código tácito, cada casa começou a deixar pedaços de frutas para cativá-lo. E, então, percebi o porquê de ele tentar atravessar as janelas de vidro da sala de jantar: através delas, ele vê mamões, maçãs, bananas na fruteira. Tento entender que ele quer ser meu hóspede e, se for assim, será o primeiro tucano que acolherei com carinho, com ternura e sem prevenções.

Os sons que eu ouvia eram, pois, os do tucano. Que berram, chalram e estralam. Ora, sou homem que aprendeu a ver o simbolismo das coisas, que entendeu, à duras penas, haver uma simbologia na vida. Por que o tucano escolhera o meu jardim para pousar, para descansar, para brincar? Por que ele tenta hospedar-se dentro de casa, comendo de minhas frutas, inebriando-se do cheiro delas? Qual a mensagem?

Entender símbolos é o mesmo que interpretar sonhos. Apenas quem os tem pode fazê-lo. Então, nesse tempo de minha vida – de um ainda maior recolhimento, de recuperação de memória, de viagem pelo tempo e por espaços – tento entender a mensagem simbólica de um tucano em meu jardim. E ele – berrando, chalrando e estralando – parece me dizer: “Não me confunda com homens que me usam como símbolo deles. Não sou mau nem estúpido como eles.” Com a imaginação delirante, sinto, então, que o tucano me mostra o lado mórbido e, às vezes, sórdido do ser humano, que se aproveita da natureza para deturpá-la e deteriorá-la. A cada chalrar do tucano, ouço- berrar: “Não sou igual aos humanos, não me confundam com eles.”

E fico à espera de que ele volte. Mas com dúvidas. Pois, na busca do entendimento simbólico, o tucano pode ter aparecido para, talvez, avisar que é um tempo de adeus de um outro tipo de tucanos, quem sabe? O de meu jardim diz que, enquanto aves, tucanos sempre encantarão. Mas homens tucanos são apenas homens. E nem sempre isso é bom. Bom dia.

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