Gabriela

É antiga minha história com Gabriela. Posso dizer que uma relação de amor e ódio.

Tive a sorte de nascer numa família de ledores de livros e amantes da arte. Minhas lembranças são meus pais e irmãs lendo sempre, minha mãe pintando, papai ao violino, as irmãs ao piano – e livros e livros, jornais e jornais, revistas e revistas. Para completar essa benção, tornei-me próximo de João Chiarini – amigo pessoal da família – desde a infância. Vai daí, o brotar de meu desejo de ser escritor já na meninice. E minha paixão infantil por Thales de Andrade, também amigo de meus pais? Paro por aqui, antes de engasgar com a saudade.

O fato é que, a partir de minha alfabetização – que aconteceu antes de eu ir à escola – me tornei um viciado em leitura. E em escrever. João Chiarini e alguns professores nas escolas de meu tempo foram-me introduzindo no universo maravilhoso da literatura e das grandes obras de pensadores. Misturei tudo: Jorge Amado, Érico Veríssimo, Machado de Assis, Balzac, Sartre, tantos e tantos outros, gibis, história em quadrinhos. Mais do que ler, eu queria aprender a escrever, a ter um estilo, meu desejo enlouquecedor de ser escritor, paixão que obrigou meus pais a me levarem a um psiquiatra, ainda nos anos 1950: “esse menino está louco.” Estava mesmo.

Jorge Amado me seduziu pela alma e pelo espírito. Eu dormia com Jorge Amado, comia, respirava, sonhava com ele. Fui adquirindo seus livros – e devorando-os – um a um. Quando descobri Pablo Neruda, dividi minha paixão entre ele e Jorge. E fui escrevendo minhas coisas, escrevendo e rasgando para reescrever de novo. Até que apareceu “Gabriela, Cravo e Canela”, a maldição maior de minha vida. E, quase ao mesmo tempo, “Confesso que vivi”, de Neruda. Fiquei bloqueado, impactado, incapaz de escrever uma linha sequer, humilhado, envergonhado de minha pretensão. Eu me perguntava: depois de Jorge Amado, depois de Neruda, quem há de?

Jamais irei entender como um homem pôde ter escrito um livro como Gabriela. Um caleidoscópio de personagens que se entrecruzam, o fascínio de cada um deles, a vida correndo solta e verdadeira, uma história ora em ritmo de prosa, ora em poesia. E não consigo vislumbrar possa surgir alguém com o talento e a vocação de Jorge Amado como contador de histórias, com sua irreverência poética, a sabedoria de impedir que o erotismo esbarrasse na pornografia. Gabriela, com o sabor do cravo e a cor da canela, se tornou, acho eu, a síntese admirável da sensualidade feminina brasileira, maliciosa e ingênua, provocante e infantil.

O fato é que fiquei quase um ano sem ânimo para escrever literatura. Fiquei incapacitado, impotente na criação, como se qualquer outro personagem ou qualquer outra história fossem – e seriam – medíocres diante de Gabriela. Ainda agora, quando vejo os livros de Jorge Amado na minhas estantes, fujo deles, com medo de, relendo-os, voltar-me a constatação de que, tal como o sapateiro, eu não deveria ir além das sandálias.

Pois bem. Quando Gabriela se tornou, pela primeira vez, novela de televisão, eu estava acamado, recuperando-me de um acidente. Tive medo de ver, medo de Gabriela. Mas fui cedendo e, noite por noite, Sônia Braga me levou à exaltação. Ela era Gabriela, a verdadeira. Sônia Braga e Gabriela eram uma só mulher. Jorge Amado não criara nem uma, nem outra. Gabriela estava pronta em Sônia Braga e Sônia Braga se transmudava em Gabriela, sei lá.

Agora, arrisquei-me a ver um que outro capítulo da nova versão de Gabriela. Perdi o medo. Essa Gabriela – representada pela Juliana Paes – não é Gabriela. Pode ser bonita, mas não é Gabriela. Cadê o sabor do cravo, no corpo da cor da canela? Juliana Paes, para mim, é um clone de Gabriela. Portanto, um clone de Sônia Braga. E assim não vale. Deixei de ver, pois nunca gostei de imitações. Quem leu a Gabriela de Jorge Amado, quem a viu no corpo e alma de Sônia Braga acho que sabe do que estou falando. Ah! Gabriela… Bom dia.

1 comentário

  1. celso bisson em 19/08/2012 às 17:45

    de fato Gabriela parece que foi escrito pensando em Sonia Braga. A atriz atual se esforça, mas (me desculpem) Sonia é Gabriela, Gabriela é Sônia. Alguem tinha que interpretar nessa nova versão, a outra aí foi escolhida. Mas vale a pena curtir…

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