Magias de Nhô Serra

Há lamentos diante da morte iminente do cururu. Deveria, porém, mais do que isso, haver gemidos e rangeres de dentes. É um patrimônio cultural de Piracicaba que, perdido, seria a mesma dor – guardadas todas as proporções e registrado o exagero — de Buenos Aires se se acabassem o tango e a milonga, a de Paris se se extinguissem os “chansonniers”. A diferença é de civilização: onde a cultura é um bem, as pessoas cuidam; onde é modismo, cultura é descartável, epidérmica.

Quem ouve cururu uma vez – mas cururu de verdade, sério, clássico – não esquece jamais. É farsa isso que se chama de “música sertaneja”. De sertaneja, não tem nada. As falsas duplas caipiras trucidam a música de viola, matam de dor a alma de Catulo. Se o sertão quase se acabou, a alma dele permanece. Nada tem a ver com “country”. Sertanejo melancoliza-se aos gemido de viola à beira rio, sob um rancho coberto de zinco ou de sapé, à luz do luar. Há quem confunda modismo com raízes. O cururu é para quem tem ouvido de ouvir. O grande Mário Dedini reunia empresários, os “socialites” de São Paulo, políticos para que, embasbacados, ouvissem o cururu de Pedro Chiquito, de Parafuso e, também, de Nhô Serra. Maravilhada, a imprensa brasileira escrevia das maravilhas do folclore piracicabano. E agora?

Foi alentador saber dos lamentos agônicos dos curueiros que vêem a grande arte desaparecendo. Eles não são bons cabritos. Por isso, berram. Bom cabrito é o povo enfraquecido, bom cabrito é a gente acovardada – que não berra. Esses cururueiros honram a memória dos antepassados, caciques e pajés da viola. O cururu nasce do sagrado. É cantoria de uma religiosidade popular comovente, respeitosa e, ao mesmo tempo, feita de picardia. À malícia do profano, cururueiros unem o respeito ao sagrado

Nhô Serra era assim. E não por acaso ele era “Nhô”, pois é esse, “Nhô”, o tratamento privilegiado que se dá a grandes senhores: o “Nhô Quim” do futebol, o “Nhô Quim” (Joaquim) Dutra, o “Nhô Ferraz”, o “Nhô Serra”. É título de respeito, de consagração, de reconhecimento, que não se reconhece em cartório, pois saído das entranhas do povo. Assim, curureiro tem essa intimidade com o sagrado e, portanto, com o mistério. “Nhô Serra” tinha esse não-sei-quê de visionário, de premonitório.

É um dos amigos queridos que se foram. Ao lado dele, vivi maravilhas. Certa vez, num Cursilho de Cristandade – em cujos trabalhos fomos companheiros – “Nhô Serra” se propôs a “ler a mão” das pessoas. Falava e acertava. Então, um jovem frade – querido por todos, tido como um vocacionado especial – estendeu a palma da mão para Serra “ler”. O curureiro viu, calou-se, não quis falar. O frade insistiu. “Nhô Serra”, meneando a cabeça, falou: “Tem uma loura aí, né?” O frade enrubesceu. Poucos meses depois, sumiu. Com a loura.

De outra feita, tomando chope na “Brasserie” – que foi lugar de tantos encontros e boêmia – um padre sentou-se à mesa, ao meio da tarde. Alguns círculos católicos preocupavam-se, então, com o crescimento do Espiritismo. O padre pediu a opinião de “Nhô Serra” e ele, apontando a Catedral, deu sua opinião: “Três horas da tarde, o povo passando pela igreja, a porta da Catedral fechada… Espírita não precisa ser procurado: vai atrás de quem precisa de consolo.” O padre saiu e foi abrir a porta da igreja.

Se e quando cururu e curureiros morrerem, a mais generosa parte da alma caipiracicabana morrerá junto. Seremos cúmplices e réus: por omissão de socorro. Bom dia.

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