Mercado e mercadoria humana

Quase já não mais me sai da cabeça a lenda do flautista no povoado de Hamelin, narrada pelos Irmãos Grimm. O lugarejo parecia viver em paz, com seus gordos e ambiciosos líderes, famílias pacíficas. Foi quando, não se sabe de onde, começaram a aparecer ratos, centenas, milhares deles. E passaram a devorar o que havia nos celeiros, nos armazéns, nas casas. A população entrou em desespero e, então, os gordos proprietários prometeram grande soma em ouro para quem resolvesse a alarmante situação.

Foi quando apareceu um flautista todo molambento, desajeitado que, diante da oferta, prometeu dar um sumiço nos ratos. Os poderosos senhores rejubilaram-se, renovando a oferta em ouro. O jovem flautista começou, então, a tocar uma tão doce e maviosa música que os ratos, encantados, saíram de suas tocas para acompanhá-lo. O povoado de Hamelin, admirado, viu os ratos indo-se como que hipnotizados pela melodia. Distanciando-se cada vez mais, o flautista chegou ao rio do lugarejo e entrou na água, tornando ainda mais maviosa a música de sua flauta. E os ratos, aos bandos e até não mais restar nenhum, afogaram-se.

O povoado de Hamelin festejou, o povo e os gordos senhores felizes. Quando, porém, o flautista cobrou a recompensa, os poderosos do vilarejo se negaram a pagar-lha. “Você quer tanto ouro apenas por ter tocado uma música?” O flautista não discutiu. Tomou, novamente da flauta, e o som mavioso passou, agora, a encantar as crianças do povoado que o foram seguindo. A melodia sedutora fascinou a multidão de crianças que, seguindo o flautista, lá se foi perdendo na distância, ninguém jamais soube para onde. De nada adiantou o desespero dos moradores de Hamelin. Pois, até hoje, cidade está deserta, lembrando a tragédia causada pela ganância dos poderosos que ousaram desafiar a magia de um tocador de flautas.

Essa lenda não me sai da cabeça. Pensando nela, ora me sinto rato seduzido pelo tilintar de moedas, ora me vejo criança acreditando na magia das flautas materialistas que nos seduzem a todo momento. Nossa Harmelin está em perigo, os ratos estão devovando tudo o que vêem pela frente e as crianças já ouvem, seduzidas, a sonoridade não de uma flauta, mas do tilintar de moedas.

Haveria, hoje, diferença entre pessoas e coisas? Talvez, sim: coisas têm sido mais valorizadas do que pessoas. E, estúpida ou inocentemente, aceitamos ser mercadoria, só que humana. Com a maior naturalidade, as pessoas falam que “estão fora do mercado” ou que “precisam entrar no mercado”. Pois, afinal de contas, o “deus ex machina” tem, agora, um nome: “economia de mercado”, a que resolve tudo, a que responde por todas as soluções, verdadeira flauta de Hamelin.

Mas mercado o que é, senão o espaço para compra e venda de mercadorias, lugar de oferta e de procura? Quem tem para comprar é mercador, quem tem para vender é vendedor. Esse “estar no mercado” nada mais significa do que aceitar-se como mercadoria e colocar-se à venda, negociando seus dons, seus talentos, suas qualidades e a própria vida por preços impostos pelo mercador. Ao se tornar “mercadoria humana”, o homem se torna um simples produto, objeto. Analogicamente, mercado é o mesmo que praça de comércio, vendedouro, feira, quermesse, bazar, entreposto, aduana, taverna, baiúca, quitanda. Logo, economia de mercado não passa de compra e venda, com a desvantagem de o comprador ter mais trunfos e cartas na manga do que o vendedor, o que se vende. Por enquanto, somos ratos ouvindo a sedução do flautista global. Mas nossas crianças, quando estivermos afogados pela tragédia de nossa inércia, serão elas a ir atrás do flautista sedutor.

Até nossas escolas e universidades estão seduzidas pelo flautista da Bolsa de Valores. Lembro-me de que, há uns 15 anos – acolhendo honroso convite que me foi feito pelo Conselho das Universidades do Brasil – aceitei o desafio de tentar fazer uma síntese do pensamento dos reitores. Eram conflitantes, já que com estruturas diferentes as universidades federais, estaduais, particulares, confessionais, comunitárias. No entanto, havia entre reitores uma palavra comum ao se referir aos alunos: clientela. Alunos não eram, pois, alunos, discípulos, estudantes, mas clientes. Ora, clientela é o conjunto de clientes, de compradores. E cliente é aquele que compra algo, que adquire bens ou serviços mediante pagamento. Ou seja: escolas há que mercantilizam o ensino, a educação. E, com promessas, fascinam a clientela como o flautista de Hamelin fez com ratos vorazes e crianças ingênuas.

Mercadores vendem tudo, incluindo gato por lebre. E compram mercadoria humana.

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