Meus muitos santos

Parece coisa complicada essa de santos e de santidade. E, no entanto, tudo pode ser mais simples. Há muito mais santos vivos do que imaginamos. Estão por aí, vivos e sobreviventes, espalhando uma santidade anônima que, com toda a certeza, é o que mantém essa luz do mundo, esse sal da terra.

Se há digamos que santos oficiais – com nomes, datas em calendário, hagiografias – são anônimos e desconhecidos os santos vivos. Todos eles, no entanto, ficam invisíveis aos olhos do rosto, como se pudéssemos vê-los apenas com os olhos do coração. Aliás, os olhos do rosto não vêem nada, apenas enxergam. Ver, vê-se apenas com os do coração, quando se encontra o invisível. Olhos do rosto olham pensando. E, como Fernando Pessoa percebeu, “pensar é estar doente dos olhos”.

Basta ver, nas ruas, a multidão, toda “doente dos olhos”. Pensando, tramando, articulando, ela passa e não vê uma outra multidão anônima que realiza milagres diários, que esparge bênçãos cotidianas. Santos, no início do Cristianismo, viviam o martírio, eram mártires da fé. A santidade cristã surge como uma construção de vida, uma opção, uma escolha por Deus, segundo o modelo de Cristo. Digamos fosse – e ainda seja – uma “imitação de Cristo”. Os nossos santos anônimos, no entanto – vivos e sobreviventes – muitas vezes, até duvidam da existência de Deus. Mas são santos pela humanidade que transudam, pela generosidade que deles transborda.

Talvez, os da hagiografia sejam santos por amor a Deus, a partir do que amaram e amam os homens. A dos santos anônimos, vivos e não-vistos, talvez seja uma santidade mais simples e mais concreta, como se prescindissem de Deus para amar. Amam as pessoas e as coisas vivas apenas por serem pessoas e coisas vivas. Não é por amor a Deus que amam. Amam por amor ao próprio ser humano, como se Deus não fosse necessário para esse esbanjamento de amor.

Penso em Clarinda. Nossa negra, gorda, santa, adorável Clarinda, cozinheira da família, como que outra mãe de meus filhos – com sua gargalhada também gorda e generosa. As crianças chamavam-na “vó”. Cachorros, papagaio, tartaruga, coelhinhos, bichos e pessoas e coisas – tudo e todos amavam Clarinda. Quando ela ia ao açougue, o papagaio voava e pousava-lhe nos ombros. E a cidade via Clarinda e o papagaio passar. Conversando.

Um dia, um macaco fugiu do circo, escondeu-se em minha casa. O dono do circo foi atrás. Chamaram-se até os bombeiros e ninguém conteve o macaco furioso. Então, Clarinda chegou. A bicharada – cães, tartaruga, papagaio – fez-lhe festa. O macaco – acho que sentindo-se protegido – saltou no colo de Clarinda, acalmou-se. E o dono levou-o de volta para o circo, judiação.

Um dia, vi Clarinda jogando água no piso do quintal, como se regasse lajes e pedras. Era uma tarde quente, dos tais sóis abrasadores. Estranhei. Então, ela me explicou: “É para não queimar os pezinhos dos passarinhos.” Ela via as avezinhas dos céus. E também lírios dos campos, mesmo não havendo campos e lírios.

Dia de Todos os Santos, lembro-me, pois, de alguns deles. Quero rever Joãozinho, meu negro Joãozinho Feliciano, o amado Joãozinho de carapinha branca, velhinho e sorridente. Ele mora pertinho de mim. De quando em quando, ofereço-lhe uma cervejinha e me ponho a ouvi-lo contar dos tempos em que cuidou de mim…

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