Noites sem flor…
Lembro-me de uma vez que a primeira página de um jornal se ilustrou com uma fotografia esplendorosa: eram quaresmeiras escandalosamente floridas nas avenidas poluídas de São Paulo. E biólogos contaram do porquê daquele esplendor: as quaresmeiras, condenadas pela poluição e pela devastação humana, passaram a se reproduzir mais intensamente e em ambientes hostis apenas para se reproduzirem. Apenas isso: as espécies reproduzem-se. É a multiplicação, é a natureza que não se suporta em seu próprio útero, que se recusa a qualquer esterilização. A natureza não tem um mínimo de racionalidade cartesiana. Pois a vida nasce de uma razão caótica. Que prossegue nos ventos e vendavais, em terremotos, em vulcões, em inundações, em pragas e em desertos. E que não consegue ser destruída pelo homem.
No entanto, os tempos são tristes. Quando se perdem detalhes generosos da convivência humana, perdem-se, também, o sabor e a beleza das coisas. Aquelas quaresmeiras coloridas talvez não tivessem sido vistas pelos passantes das ruas. E pior de tudo: em tempos com tantos ladrões, não temos mais ladrões de flores. Pois flores existem para serem roubadas para se dar a quem se ama. Tenho certeza de que ninguém, passando sob as quaresmeiras, roubou um ramo de flor para dar a alguém.
Aquelas quaresmeiras me lembraram de uma noite fria na hostil São Paulo. Eu ia ao encontro da mulher amada. Fui, então – no cimento daquelas ruas e naqueles jardins quase mortos – procurar uma flor para roubar, pois sou da geração de moços ladrões de flores em serestas melodramáticas. Mulher que nunca recebeu seresta ou flor roubada, ah! essa mulher não foi amada. Mas e a flor para roubar no cimento de São Paulo? Lembrei-me, então, do Arouche, tão perto de mim: as barracas de flores, abertas dia e noite, flores das mais belas de se imaginar. Bastava tirar uma moeda do bolso e comprar a rosa vermelha, uma só. Mas não seria honesto comprar flor para a mulher amada: o honesto seria roubar ou colhê-la no próprio jardim.
Fiquei olhando e olhando a flor. Não percebi que o dono da barraca também me olhava. Lá ficamos nós: eu, olhando a flor; o homem me olhando. Que pensaria, ele, de um cidadão todo paramentado, de terno e gravata, pastinha de executivo na mão, um bobalhão de olho numa única flor? Com alguma timidez, tirei um maço de dinheiro do bolso, mostrei para o dono da barraca que eu poderia comprar muitas das flores, mas… Então, ele riu, uma gargalhada gostoso: “Já sei, o senhor está apaixonado. E apaixonado não compra flor. Tome, leve esta, eu lhe dou de presente. Ou, então, fecho os olhos e o senhor faz de conta que roubou.” Como um adolescente, atravessei as praças com uma rosa sanguínea na mão e, quando a porta do apartamento se abriu, a flor se despetalou entre suspiros de amor.
Lembrei-me das quaresmeiras esplendorosas e da flor do Arouche porque, noite dessas, andei pelas ruas de minha cidade em busca de uma flor para roubar. E não encontrei nenhuma. E não encontrei flor nem para comprar. As portas e janelas estão todas fechadas, não há mais gente nas ruas, as praças esvaziaram-se, os jardins estão secando. O medo perpassa os ares. Grades isolam as famílias. O silêncio amedronta. Em cada esquina, o coração acelera no receio de encontrar fantasmas. Onde estão os violões? E os roseirais? E o guarda-da-esquina que, de quando em quando, trilava o apito com monotonia e preguiça? Cadê o toucinho daqui? O gato comeu. Cadê o gato?
Voltei, então, para casa, vi as cores de meu jardim, dei-me conta de que devo continuar jardineiro. Colhi florezinhas silvestres de meu jardim, fui-me ao encontro da mulher querida. Então, quando a porta se abriu, as flores entraram antes de mim. Daí…O resto eu não conto.
• Crônica publicada originalmente no Correio Popular, em 28/3/2008