Paixão e o rabino

Paixão de cristoTudo tem significado. E, por isso mesmo, importância própria. O mistério da Semana Santa nada mais é do que o mistério do homem. Não sei mais se os cristãos avaliam, ainda, os segredos ocultos em todo esse simbolismo. A Páscoa cristã tem um significado aterrador, pela ressurreição que ela promete. Ora, o que há de mais assustador do que um homem ressurgir de sua própria morte? O que, de mais ilógico, de mais absurdo diante da mísera razão humana? E, no entanto, até o mistério profundo foi banalizado. Por isso, a Páscoa dos judeus me parece mais simples, o Pessach, a memória, a passagem, aquilo que vem do passado. A dos cristãos é anúncio de futuro. Talvez, seja uma diferença essencial: os judeus ainda esperam; para os cristãos, já aconteceu. Ora, esperar tem o sentido da esperança. Diante do já realizado, podemos nos sentir como apenas espectadores de uma história.

Aborreço-me comigo mesmo por ter-me posto à margem do profundo ritual da Semana Santa. E, no entanto, a Paixão, com maiúscula, é o que de mais dramático pode ocorrer à alma humana. Não são as paixões, nem mesmo a paixão no sentido de amor extremado, de doação ou de posse. Paixão é agonia, dor, sofrimento. E só pode conhecê-la quem entendeu a Vida, também com maiúscula. E que, por tê-las tido — Vida e Paixão — conheceu a Morte. Ressurreição é para poucos.

Nesta Semana Santa — onde e quando tudo deveria ser sagrado, tempo de liturgia encantada —, sinto mais a agonia de Henry Sobel, o rabino, do que sentir por Cristo. A agonia, a dor, o martírio de Henry Sobel me tornam parte de sua tragédia humana, enquanto a de Cristo me soa como lembrança de história repetida, revivida. A de Sobel está na carne humana. E, então, eu me torno Henry Sobel na sua dor, estou nele, vivo sua história e me identifico com ela. Pois a minha — a de todos nós, na verdade — é uma quase desesperada expectativa para que Henry Sobel — após sua Vida maravilhosa, após essa Paixão e Morte com motivos tão pobrezinhos — consiga a sua Ressurreição, a ressurreição moral. Precisamos de sua ressurreição.

Ora, quem não ouviu o clamor do silêncio coletivo — de perplexidade e de medo — de todos os brasileiros diante do episódio envolvendo Henry Sobel? Ninguém quis acreditar, pois não podíamos acreditar. Se acreditássemos, estaríamos diante do desmoronamento de uma de nossas mais sólidas balizas humanas, seríamos derrotados e vencidos diante de princípios e valores soterrados. Acreditar que Henry Sobel carregava, diante de si, a pequenez dos pequenos gatunos seria matarmo-nos a nós mesmos. Por isso, ninguém acreditou. Não podíamos acreditar. A perda de referenciais resulta no caos.

Ninguém, com a estatura moral de Sobel, tropeçaria em algo moralmente tão pobre se não houvesse algum motivo ou razão absurdos. E, diante do absurdo, a razão não encontra explicações. Lá estava ele, um dos líderes de um tempo, levado a uma cela de prisão, responsabilizado por pequenos furtos, humilhado diante da inflexibilidade da lei. O que acontecera? Como fora?

Diante dos fatos concretos, não houve quem tivesse a ousadia de condenar, preferindo buscar explicação muito além da ordem moral e legal, nos escondidos da alma humana, na fragilidade diante do insondável do psiquismo e, até mesmo, de uma influência química. Foi como se, coletivamente, chegássemos a uma mesma conclusão: era preciso preservar a integridade de Henry Sobel porque, nela, estava a nossa própria integridade. O colapso moral de Sobel seria também o nosso colapso.

Por isso, acredito, nesta semana santificada de cristãos e de judeus, dos judeus, estarmos diante de uma graça inexplicável, como inexplicáveis são as graças. Poucas vezes, tivemos a oportunidade coletiva de uma reflexão profunda, conjunta, diante dos mesmos medos, dos mesmos aturdimentos, diante do mesmo susto. Pois, na realidade, muito mais do que diante do fracasso de um homem, muito mais do que diante da queda de um líder — estamos diante da vitória do bem. Nós, o povo, fomos guardiões do bem, na compaixão por Sobel. Entendemos que, se ele tivesse caído, teríamos caído também.

Ao preservamos a história e a imagem de Henry Sobel acabamos reencontrando, de alguma forma, o que de melhor há em nossa história e em nosso destino coletivos. Os líderes morais têm que ser preservados, são a consciência da nação. Não me tomem, pois, por herege, por iconoclasta, mas a ressurreição de Henry Sobel, hoje, me parece mais importante do que o simbolismo do Cristo ressuscitado. A do Cristo, já aconteceu. A de Sobel precisa acontecer. Por nós, desnorteados no mundo.

*Publicada originalmente no Correio Popular em 6/4/2007

Deixe uma resposta