Riquezas judaico-cristãs

picture (42)Não sei se ainda se diz que esta é a Semana Santa. Dizia-se. Fico frustrado, uma sensação esquisita não sei se de tristeza, se de melancolia. Houve tempo em que – de gente triste e melancólica, amargurada e nostálgica – falava-se terem-se fechado na “caverna de Trofônio”. É uma história dramática, o mergulho em abismos onde ou se fica para sempre ou, conseguindo retornar, traz-se ainda mais tristeza à superfície. Cavernas são simbólicas dessa busca de recolhimento, do retorno ao útero, talvez do homem diante de seus aturdimentos.

À chegada dessa Semana Santa , frustro-me por, ainda outra vez, não ter realizado o que me prometi. É triste, mas deixo de levar a sério comprometimentos para comigo mesmo. E eu me prometera um mais profundo recolhimento. Permanecer em silêncio. Não para aguardar o miraculoso, apenas um simples ritual silencioso. Pois, deixando de fingir para mim mesmo, admiti: preciso de rituais. Talvez, de liturgias. E, com toda certeza, de celebrações que retomem o encantamento do que se desencantou.

Não há como ignorar: a vida é, toda ela, ritualística. Até as estações do ano falam desse ritual da Terra, passeando entre constelações. Ora, o mundo inundado por ovos de chocolate não me fizera perceber a chegada da Páscoa cristã. Foi “Pessach”, a Páscoa dos Judeus, que me sensibilizou. Enquanto jornais e televisão mostravam os horrores entre israelenses e palestinos, vi-me folheando “Morashá”, riquíssima revista de cultura judaica. Para preparar “Pessach”, o trecho inicial dizia: “A procura do chametz (fermento) é feita no domingo 4 de abril, depois da saída das estrelas.” Era a linguagem poética, doçura quase extinta, o enxergar magia onde há magia. “Depois da saída das estrelas” é a chegada da noite. Apenas isso. E tudo isso.

Ora, não há como imaginar rupturas entre a alma árabe e a judaica. E, muito menos, o cristianismo sem o judaísmo. Alimentar ódios e conflitos, promover discórdias, criar divergências onde há convergências – isso é loucura. E violação do mistério da humanidade. “Pessach”, parece-me, une os judeus em torno do sagrado muito mais do que a Páscoa ocidental tem unido cristãos. E, no entanto, “Pessach” e Páscoa compõem uma verdadeira comunhão, como se, através dos séculos, judeus e cristãos sejam convidados a darem-se as mãos.

Cristo não teve Páscoa. Judeu, ele viveu “Pessach”. Assim, a última ceia de Cristo foi o “seder de Pessach”, dele e dos apóstolos. Para os judeus, vinho é vida; para os cristãos, sangue de Cristo. Do “matzá”, pão ázimo, surge a hóstia católica. E a massa é “charósset” dos judeus, mistura de nozes, tâmaras, amêndoas, canela, vinho. Na ceia judaica, o condutor da cerimônia corta o pão em duas partes, lembrando o pão da pobreza. Na eucaristia católica, o celebrante corta a hóstia também em duas partes. E ambos lavam as mãos e tomam o vinho.

Essa comunhão entre cristãos e judeus aconteceu algumas vezes em Piracicaba. Hoje, não sei. Em algumas paróquias, a magia da semana santa chegara a ser uma rememoração das belezas e riquezas judaico-cristãs. Milênios de tradição, de fé e de cultura entravam em comunhão. A guerra pertence aos loucos.

Minha semana – pouco santa – apenas começou. Talvez, “depois da saída das estrelas”, possa, eu – quem sabe? û mergulhar em silêncios mais amplos. Os rituais, todos eles, estão soltos no ar, vindos das funduras dos séculos nas asas da alma humana. Bom dia.

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