Paz não compartilhada

O texto foi publicado no dia 15 de agosto de 1979 em “O Diário” e depois selecionado para o livro “Bom Dia – Crônicas do Autoexílio e da Prisão”

Recebo, com serenidade, a crítica que me faz um amigo. “Você anda triste” – diz-me, ele. Não se trata, na verdade, de tristeza. Talvez tenha deixado escapar algum laivo de melancolia. Isso, no entanto, faz parte de mim mesmo. Não creio, aliás, haja quem não carregue consigo regatos de melancolia. Até mesmo de nostalgia. Pois tenho, para mim, que somos todos, no fundo, melancólicos e nostálgicos. Alguns sabem escondê-lo. Outros não o sabem e, às vezes, nem mesmo o desejam. De minha parte, nunca me preocupei em ocultar o que me vai pela alma. Seria desgastante para mim e desleal para quem me lê. Acredito no ser humano apenas quando ele aceita os seus próprios paradoxos, quando assume suas contradições e sabe situar-se diante das encruzilhadas.

Não é verdade, pois, esteja, eu, triste. Pelo contrário, vou conhecendo uma paz interior que me faltou durante muitos anos. Acontece, apenas, que ela não me tem bastado. A paz, para ser real, tem que ser repartida. E o que sinto é, nessa minha transição de vida, não ter com quem reparti-la. Aceito a circunstância, e a espera me dá um sabor mais licoroso de expectativas e até mesmo de ansiedade. Fico na posição de quem sabe que, a poucos metros de si, está uma granada. E que ela explodirá. Sinto apenas, pois, a ansiedade de quem aguarda a explosão da granada e se prepara para recolher os cacos.

Parece-me ter sido no livro “O Menino do Dedo Verde”, não me lembro bem, que um canhão detonava e, ao invés de explosivos, lançava flores. A minha granada, essa que está a poucos passos de mim, está carregada com flores. Não quero e não posso detoná-la porque, se o fizer, não terei com quem comentar o tapete de pétalas que ficará pelo chão, o aroma do ar que se tornará almiscarado depois da explosão. Ninguém pode ser uma ostra e fechar-se em si mesmo. E as circunstâncias – a distância da família, a ausência provisória de mulher e filhos – isso me melancoliza, deixa-me nostálgico. Estou segurando a granada para, quando estiverem a meu lado, deixá-la explodir. Olharemos juntos as cores, ouviremos os sons, aspiraremos os aromas. Quero tomar, nas mãos, uma begônia e mostrá-la a quem amo. Para acariciarmos conjuntamente as suas pétalas.

Não, não ando triste. Estou, talvez, numa hora profunda de reflexão e o que me aborrece apenas é saber que, ainda, não posso permitir sejam compartilhadas a serenidade e a harmonia da pousada em que meu pangaré me deixou. É certo não existir a felicidade absoluta e plena. Quem pode – a não ser que tenha coração de pedra – sentir-se feliz, mastigando de seu pão, bebendo de seu leite, sabendo haver milhões a quem se nega até mesmo as migalhas do que nos sobra? Quem pode ser feliz no seu cantinho solitário enquanto há milhões sem ter nem mesmo onde descansar a cabeça?

Acredito sejamos, todos, nostálgicos e melancólicos. Uns disfarçam, outros não. Incluo-me entre os que não sabem disfarçar. Na verdade, de nada me adianta estar em paz comigo mesmo se, a meu lado, se trava a grande guerra. A paz tem que ser repartida. E não descobri, ainda, a fórmula para reparti-la com todos. Encontrei-a muito arduamente. É, apenas, uma criança dentro de mim. Pequenina e até mesmo insegura. Se soltá-la, ela se perderá em meio à guerra. Então, eu a terei perdido e ninguém a terá encontrado. Bom dia.

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