Cantiga eterna

picture (41)Estou devendo, ao Douglas Simões, um encontro pessoal, daqueles em que ficamos falando das coisas boas da vida. Sempre foi assim com os irmãos Simões. Mas algumas dificuldades me impedem esse retorno a conversas tão boas como as que eles sempre repetem com o “Falando da Vida”, espetáculo que Piracicaba passou a amar e a admirar. Dentro em breve, baterei à porta do coração do Douglas e combinaremos: “vamos falar da vida?” .

Na realidade, devo gentilezas inesquecíveis aos irmãos Simões, que não esqueço, pois o coração não esqueço. Já escrevi sobre isso. E, quando me voltam à lembrança, fico apenas coração. Eu estava em prisão domiciliar, prisioneiro numa gaiola de ouro. Mas o mais belo e esplêndido presente, ganhava-o, da vida, naqueles meses, sem que eu, então, o tivesse avaliado. Eram generosidades, pedaços vivos de humanidade que, dia após dia, recebi. Essa pessoa ambígua e, para mim, de alma imensa, “Madalena” – que o mundo conhece como travesti – é-me, ainda hoje, testemunho comovente de que a fraternidade existe. Em cada manhã, “Madalena” levava-me um pequenino buquê de flores, sua maneira de manifestar solidariedade. E, em madrugadas vazias, o então grupo de seresteiros dos Simões ia levar-me sons de liberdade, de vida. Antes do “Falando da Vida”, eles já me falavam de vida. E, desde então, continuamos falando da vida. De vida.

Com o Newman, já conversei muito em torno da figura mística de Thiago de Mello, o poeta, de “Os estatutos do homem”, que decreta nada mais haver de obrigado ou de proibido, a não ser uma grave e severa admoestação: “Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.” E, então, “o homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.”

Para mim, a vida será pouca para falar de Thiago de Mello. Pois, por mais passem os anos, não se esgotam lembranças de lições, de sabedoria e de humanidade que Thiago transmite, como se soprando uma lufada de vento fresco na alma. Thiago de Mello não mais me saiu da cabeça, do coração, desde quando o entrevistei, repito-o sempre e, talvez, pelo resto da vida. Foi daqueles encontros totalizantes, quase que uma conversão ou um batismo. Se eu começar a contar, não saberei parar.

Num daqueles dias, Thiago marcou a nossa conversa para a hora do almoço. Cheguei, ele próprio estava no fogão, lembrando-se dos tempos em que, no exílio, cozinhava para Neruda, Picasso. Naquele almoço, ele me preparara a surpresa: iria cozinhar para nós, ele, a mulher e eu. E cozinhou um ossobuco, cujo sabor me levou a descobrir o gosto como dom. O que deixei de contar, fazendo-o muito tempo depois, foi um cantarolar de Thiago, ao fogão. Em meus ouvidos, a melodia chegou como canção de ninar. Ele percebeu meu encantamento, falou: “é cantiga de roda de minha infância em Manaus.” Então, perdi o fôlego.

Pois era, também, cantiga de minha meninice, das ruas de Piracicaba. E cantarolamos juntos: “Boa noite, Senhoria, matu-tiro-tiro-lá./ Escolhi uma das vossas filhas/ matu-tiro-tiro-lá.” Quem ainda se lembrar haverá de responder: “quero me casar com ela/matu-tiro-tiro-lá.” Então, perguntarei: “que ofício dás a ela, matu-tiro-tiro-lá.” E haverá lágrimas de saudade. Bom dia.

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