Tédios de domingos

Sabia-se, antes, que domingo pede cachimbo. E que o cachimbo é de ouro, bate no touro. Que o touro, valente, bate na gente. E que a gente é fraco, cai no buraco. E o buraco é fundo: acabou-se o mundo. A vida, pois, era mais simples.

Não tenho certeza, mas, talvez, a principal revelação à criançada tenha sido a de que “o buraco é fundo”. Pois seria triste ensinar, como anda ocorrendo atualmente, que buracos sejam apenas rasos, superficiais. Naqueles tempos, havia buracos e buraquinhos. E ingenuidades misturadas a preconceitos. As crianças aprendiam que, além do “buraco fundo”, havia, no caminho, um buraquinho. Menino recitava assim: “Eu ia indo por um caminho, encontrei um buraquinho. Fui ver o que tinha dentro, era caca de negrinho.”

Havia algumas certezas, possíveis, ainda agora, de ser retomadas. Eram certezas comprovadas. Por exemplo: “não há sábado sem sol, domingo sem missa, segunda-feira sem preguiça.” Quem ousa dizer o contrário? Aí estão os sábados, ainda ensolarados. E lá nos chegam os domingos, com suas missas, tantas e tantas, sinos bimbalhando. E as segundas feiras, ah! segundas feiras… Nem falemos disso. Que a vida continua simples. Apesar dos que a complicamos.

Na verdade, o buraco continua fundo, mas domingo já não pede cachimbo. Os cheiros são outros. E outros, os sons. Cadê as matinês após as missas? E a criançada brincando nos jardins? E os heróicos jogos de futebol de várzea, multidões aplaudindo e gritando? Futebol varzeano, esse o nome. Pois as cidades tinham várzeas, aqueles campos imensos, terrenos baldios, espaços livres que a moçada transformava em áreas esportivas. Uma trave em cada lado, marcas de cal na terra – era tudo o que bastava. Mas a gente é fraco, cai no buraco, o buraco é fundo, acabou-se o mundo.

Sou, no entanto, suspeito para escrever sobre domingo, de domingos. Tenho traumas. Descobri-o há mais de vinte anos. O mundo acabara e eu não percebera. Num domingo após o almoço, resolvi passear-me pelas ruas que eu sabia modorrentas. Saí, ouvi a voz de Sílvio Santos vindo de uma casa. E, também, de outra. E de mais outra. Em todos os quarteirões. Na cidade toda. Havia um único som: Sílvio Santos. Hoje, parece haver mais duas vozes, as de Gugu e de Faustão. Não sei. Aos domingos, escondo-me entre as ramagens de meu jardim.

O diabo foge da cruz e eu, da voz de Sílvio Santos. Tanto assim que devo ser um dos poucos brasileiros que jamais viu um quadro dele na televisão. Não por preconceito ou implicância. Por trauma. A voz de Sílvio Santos agonia-me como símbolo, sinal, testemunho de um mundo soterrado. E o dramático está no confronto dominical: a voz de Silvio Santos mostra-me o holocausto daquele tempo, e o anúncio do apocalipse chega-me por um som ainda mais martirizante, a música do “Fantástico”. Não há quem saia ileso de tal bombardeio deprimente e depressivo: Gugu, Sílvio Santos, Faustão, “Fantástico”. Salvo-me por canais de tevê paga, onde há vida inteligente.

E cheiros de domingo? Deles, quem se salva? São trazidos e levados pelo vento, pela brisa. Estão no ar, vindos do infinito. Espalham-se pela cidade. Invadem casas. Penetram nas narinas indefesas, infiltram-se nos pulmões, atordoam, nauseiam. É um aroma só, um só odor: aos domingos, Piracicaba recende a churrasco e a frango assado. Carne queimada, gordura derretida.

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