Não se adotam avós

picture (12)Não sei de quem se lembra de Giorgio Angelozzi, um italiano de Tívoli. Com 80 anos, viúvo, aposentado como professor, ele espalhou pelo mundo que desejava ser adotado por alguma família sem avô. E até pagaria pela adoção, garantindo ser, ainda, “socialmente útil”. Diante do fato, lembro-me ter perguntado a mim mesmo porque alguém, aos 80 anos, ainda insistia em ser útil socialmente. Mas não tenho 80 anos e nem penso em utilidade, a não ser a de velho contador de histórias.

Em situações assim, sempre me lembro da figura plácida e imóvel do Buda e daqueles três macaquinhos da sabedoria oriental: não ver, não falar, não ouvir. Meu sonho é imitá-los, pois E sem qualquer, sem nenhuma, sem uma única sequer utilidade para quem quer que seja. Pois, tem utilidade aquilo que é para se usar.

Pensei demais nisso e descobri ter sido útil demais a vida toda. Para muita gente. Para os outros. E, agora, desejo a inutilidade diante das pessoas para tentar ficar comigo mesmo pelo menos por algum tempo da vida. Quero viver a experiência de gostar de mim primeiro. E com inveja de velhos africanos cujas tribos os levam para o alto das montanhas onde, em cavernas confortáveis, lá ficam eles olhando e ouvindo os sinais da vida e do mundo: nuvens e passarinhos dos céus, o dia luscofuscando em mistérios de entardecer, cores de cada amanhecer, transparências dos pingos de chuva, cricrilares de grilos, cucuricares de galos, zumbidos de abelhas, piares de coruja e até zunidos de mosquitos.

Em cada som, há mensagens. Em cada visão, avisos. Assim, vendo e ouvindo coisas, os velhos põem-se em contemplação, à espera de que os moços lhes perguntem coisas de saber. Como os velhos áugures ou agoureiros romanos, lá ficam eles à disposição para revelar os bons ou os maus augúrios, agouros anunciados pelos vôos e cantos das aves.

E são tidos por bruxos, mágicos, feiticeiros. E, no entanto, são apenas vividos. Capazes de contar, contam por já terem visto e ouvido. Contando, chegam até a adivinhar o que poderá ocorrer. Adivinhando, previnem. Quando acontece, passam por maus agoureiros, invocadores da má sorte. A simples cena de uma criança subindo na cadeira é bastante para ilustrar. “Você vai cair.” – fala o velho. “Não vou.” – desafia a criança. Então, cai.

Tudo de que idosos e vividos – e me incluo entre eles – podem dispor é de alguma experiência de vida. Só. E, no entanto, a experiência de viver não serve nem mesmo para quem já a tem. Ora, que diabos iria, por exemplo, lá, eu, fazer com minha experiência de militância político-ideológica-partidária? Serve-me, apenas, para não ser militante de mais nada. Em mais nada.

Não sou velho tolo para dizer, a um jovem idealista, ser impossível construir o mundo idealizado. Que moço acreditaria? Graças aos céus, a juventude é surda. Sem ouvir, vai em busca de viver seus sonhos, acreditando neles. O inventor de todas essas coisas – de céus, terras, mares, bichos – soube fazer as coisas: se jovem ouvisse o realismo da experiência dos velhos, o mundo seria desinteressante.

Ainda agora, quero aquilo que o italiano de Tívoli recusou: não ter qualquer utilidade para ninguém, ficar quietinho no meu canto, ter todas as horas do dia para mim, apenas para mim e minha sociedade dos poetas e músicos e pensadores mortos. Ora, é Primavera anunciada. Já ouvi zumbido de abelha, já vi borboletas misturando-se às flores, vejo gatos e cães no cio, é o mundo no cio. Insisto na sagração pessoal à Primavera. E consagração. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins, em esboço de Pacheco Ferraz.)

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